Ficções
Todas as histórias que andei escrevendo nos últimos anos, e que vou escrever nos próximos
A Fada do Bigodão
Luíza, deitada na cama, encarava o teto salpicado de estrelinhas adesivas cheias de glitter. O quarto tinha sido decorado quando ela tinha oito anos. Na época, fazia sentido. Agora, ela tinha trinta e seis, e os pontinhos brilhantes tinham sido ressignificados por uma vida de insucessos. Cada estrelinha era como um sonho morto.
Dezessete Graus
Ana enlouquecia com o ar condicionado, ou melhor, com a falta dele. O apartamento de uma única e estreita janela a fazia andar quase nua. Era isso ou a combustão. Escolheu gastar as economias no concerto, a outra opção seria gastá-las inventando motivos para se ausentar do pequeno forno ao qual chamava de lar, mas sairia mais caro.
J de Jemido
Jota revirou-se na cama, transbordando de auto piedade. Tentava expor ao mundo a terrível moléstia da qual padecia, mas fracassava em convencer até a si mesmo. O rosto se iluminava, intermitente, com a luz da tela do celular. Não tinha forças pra começar nada, tão pouco conseguia deixar de responder a cada tremida ou apito de comando do aparelho.
Onde ninguém jamais esteve
A Nemo saiu de dobra num solavanco e todos os alarmes começaram a soar. Os sensores indicavam uma ejeção de massa coronal. A gigante vermelha que os havia chutado para fora do hiperespaço agora atraia a nave com seu campo gravitacional imenso. Os motores de empuxo estavam no limite, mas a nave continuou desacelerando até parar, então passou a mover-se em direção a estrela.
Depiladora e Pedicure
Os irmãos tiveram de atravessar a cidade inteira para chegar no local da demanda. Busão lotado, foi o que deu pra fazer. De tão baixa que era a recompensa, se fossem pagar um uber ficariam no prejuízo.
— Cleiton, vai se adiantando aí que a gente desce na próxima.
— Cara, acho que não vai dar não. Tô mal conseguindo respirar aqui e tu quer que eu me mexa?
— Bora, Cleiton, deixa de graça! Senão, tu sabe como tá lá em casa, tem nem pra janta hoje.
— Tá certo — Cleiton suspirou. — Senhora, leva mal não, mas vou ter que dar uma forçadinha aqui pra passar. Com todo respeito aí, beleza?
Infalível
Era uma profecia, a tradução indicava o fim do mundo pra dali a dois dias. Rogério tirou os óculos e coçou a barba. Quatorze meses metido no meio da floresta, calor, mosquitos do tamanho de um boeing, malária, bolsa atrasada. Ele tinha superado tudo na esperança de encontrar um artefato realmente significativo, algo para provar a diversidade cultural dos Yatan em relação ao resto das Américas. E agora, a grande descoberta era uma cópia mal engendrada das profecias de apocalipse Maias.
Oficialmente um tamanduá
Oficialmente, era um tamanduá. O DNA não batia, as proporções estavam todas erradas e a coisa não tinha sequer pelagem, mas alguém carimbou e encerraram o caso. Ninguém se importava, essa era a verdade. A vítima estava morta, o bicho também, não havia porque investigar mais. No fim do dia, foi todo mundo pra casa tomar uma gelada. Poderia ter terminado assim pra mim, infelizmente havia uma diferença entre eles e eu: eu ouvi as palavras.
A Loja
Parecia um dilúvio, mas talvez fosse questão de perspectiva. Já era raro a cidade ver chuva, ainda mais tanta água assim em novembro. Longe do carro, Alberto e Amélia corriam como ratos em busca de abrigo, uma marquise que fosse. A esperança de encontrar algum lugar funcionando no feriado já chegava ao fim quando viram um neon de “aberto” exibindo seu exuberante azul em meio aos pingos. Entraram.
O Gato
Viu o gato saltar pela janela. Quando o olhar voltou-se ao centro da sala, percebeu o corpo, um dos sapatos a dois passos de distância. Concentrou-se no sapato. Vermelho, salto de alturas vertiginosas, manchado com um outro tom da cor. Ficou ali encarando o calçado, pensando em números. Trinta e oito? Quarenta? Definitivamente quarenta. Mas qual mulher calça quarenta? Perguntou a si mesmo recebendo uma resposta imediata do próprio cérebro: Várias, seu imbecil, agora chame a polícia.
Metrópole sul
O que você acha que precisa para ser uma potência mundial, parceiro? Se você respondeu “grana” não tá errado, mas tem país por aí entupido de dinheiro e irrelevante na política internacional. Vou te mandar a real, a resposta é “poder de fogo”. Quando você tem a capacidade de varrer uma nação da face da terra sem muito esforço, você tá no jogo. É por isso que, agora, uns setenta por cento do globo fala o idioma brasileiro. Os parças obrigaram até Portugal a adequar as regras gramaticais deles ao nosso idioma.
Barganha
Prendeu a fiação na turbina improvisada, um toque na alavanca do pequeno guindaste fez a peça deslizar suavemente para dentro do rio. Um zunido baixo ressoou quando a força da água começou a fazer girar as palhetas. As luzes de potência foram acendendo uma a uma, os ponteiros dos indicadores do painel oscilaram até se fixar na zona verde. Era energia suficiente.
Perfeição
Valeria sentia os olhos do sistema na nuca. Aquela era sua terceira avaliação abaixo da média em menos de um mês, e seu escore geral ameaçava chegar perto do limite mínimo. A perda de mais um décimo acarretaria numa visita compulsória a um Centro de Bem Estar.
Eu Sou Não Sou
Qual não foi minha surpresa ao notar tudo ainda em seu lugar. Outdoors anunciando desodorantes milagrosos, carros, apesar de imóveis, infestando as ruas como de costume. Prédios intactos e, naquela padaria do outro lado do quarteirão, frangos ainda girando na máquina.
Espirais
Lembro com clareza da primeira referência que encontrei sobre daiva kuncikā. Foi em um livro esquecido de Howard Carter, escrito no início do século XX. Carter entrou para história da egiptologia com a descoberta do sarcófago de Tutankhamon, mas foi um objeto específico, entre os milhares de itens encontrados na tumba, o alvo do único livro escrito por ele fora da área da egiptologia.
Cramunhão
Todos os dias, ao voltar do trabalho, a garota estava perto do ponto de ônibus. Insinuava-se para ele com um “quer se divertir hoje, amorzinho?” ou mostrava o seio e dizia “vem cá, você não vai se arrepender”. Mas Jorge, rapaz de família, bem casado, evangélico e temente ao Senhor, resistia àquela tentação do demônio.
Osvaldo
— Eu não sou real, Osvaldo.
— Como assim?
— Como “como assim?”, Osvaldo? Eu não existo, não sou real, você me imaginou. Eu só existo na sua cabeça… quer que eu desenhe?Ovo de Avestruz
A surpreendi ao celular. Afirmou ser um amiga, mas era mentira. Essa não foi a primeira mentira dela pra mim, e com certeza não seria a última. Também não foi a primeira vez em que decidi não fazer nada a respeito. As pessoas precisam de mentiras, o mundo não sobreviveria nenhum mísero dia baseado exclusivamente na verdade.
O Ceifeiro
Existem pessoas aparentemente incapazes de entender o quão apertada é minha agenda. Gente que, por sofrer com um ou outro problema na vida, sente-se no direito de bagunçar meu complicado cronograma tentando decidir por si mesma o momento da própria morte. Estão sempre querendo furar a fila. Se eles soubessem o quão complexo é remarcar mortes por causas naturais, acidentes ou homicídios, com certeza não fariam isso.
Amor e Piçarra
A primeira vez em que a viu, ela caminhava para ser de outro. Marchava resignada em direção à capela para desposar um homem escolhido pelo pai. Os olhos castanhos dela lhe divisaram o torso nu, cruzando com os seus de soslaio. Acácio parou com a pá. Lhe desgostava a ideia da poeira maculando o branco do vestido da moça. Esperou o cortejo ganhar alguma distância para continuar jogando a piçarra da carroça para estrada.
Bar de finados
Na minha rua, uma rua sem saída, havia um bar que só abria uma vez por ano, no dia de finados. Funcionava em um casarão colonial meio carcomido e meu avô dizia que era tão antigo quanto a cidade. Quando eu era pequeno, não se podia passar por lá naquele dia. Iam alguns adultos, gente séria e taciturna, mas criança não podia nem dentro nem na porta.
Querida Júlia
Com as mãos tremulas, ela apanhou sobre a cômoda o envelope pardo marcado com o seu nome. O coração já pressentia o conteúdo, mas essa antecipação não foi suficiente para fazê-la desistir de lê-lo, para destruí-lo e fugir daquela verdade incomoda. Não, o desejo pelo o último contato com o marido era maior.
Você não viu nada
Eventos exóticos, é assim que são chamados. Obviamente esse era um termo emprestado de um protocolo da inteligência militar americana. Não existiam planos, ou algo nessa linha, para lidar com esse tipo de coisa aqui. Nosso exército era, e ainda é, basicamente decorativo. Nossa agência de inteligência até hoje é uma piada.
Baccarat
“É um baccarat” Ele disse com os olhos brilhando e um sorriso bobo. Começou a tagarelar sobre a história da peça, de como foi um dos primeiros do tipo e pertenceu a Napoleão III. Afirmou não ter ideia de como aquilo tinha ido parar numa coleção particular, e mais um monte de coisa enquanto saltitava pela sala como uma criança.
E o salário, meu deus, o salário! Era uma fortuna! Daria pra gente financiar um apartamento. Eu até estranhei aquele dinheiro todo para trabalhar só vinte horas por semana, mas ele argumentou sobre o francês ser um bilionário, de como rasgava dinheiro. O pagamento, perto do valor da peça restaurada no mercado, era troco. “Agora nossa vida vai engrenar”, disse.