Luíza, deitada na cama, encarava o teto salpicado de estrelinhas adesivas cheias de glitter. O quarto tinha sido decorado quando ela tinha oito anos. Na época, fazia sentido. Agora, ela tinha trinta e seis, e os pontinhos brilhantes tinham sido ressignificados por uma vida de insucessos. Cada estrelinha era como um sonho morto.

A maior, perto da porta, era de quando a adolescência chegou e ela descobriu que todas as vezes em que sua mãe a chamava de filha mais linda do mundo eram mentira. Mas pro lado do armário, perto de uma luazinha, ficava a estrela do macho escroto, logo ao lado de um planetinha rodeado de anéis que representam a falência profissional. O quarto em si era muito emblemático, considerando o fato de, anos após aquele teto ser decorado, ela ainda dormir ali.

Escutou três batidas na porta. Soltou um “pode entrar”.

Uma figura andrógina alta e de ombros largos, exibindo um farto bigode e usando uma jaqueta de couro com spikes e um tutu rosa de balé, passou pela porta. Luíza deu um grito assustado e remexeu a gaveta empunhando o primeiro objeto que encontrou. Seu vibrador de coelhinho.

— Não se aproxima! Socorro! Socorro!

— O que você vai fazer — A pessoa perguntou, apontando para o vibrador — , me matar de tanto gozar? Relaxa, eu sou sua fada madrinha, meu nome é Gabriela — Ele virou o tronco para o lado e balançou dois pares de asas membranosas que saiam das suas costas.

— Fada madrinha? Pirou? Acha que eu vou cair nessa? — Luíza respondeu sem muita convicção, o negócio das asas era bem impressionante — Cê sabe que fada é coisa de cultura pop eurocêntrica, né? Isso não faz nem sentido no Brasil. Ainda mais uma… fada com bigode. Sai do meu quarto! Vou chamar a polícia.

— Bigode? É sério isso, Luíza? Eu esperava mais de você, com todo esse papo de desconstrução que você prega no twitter. Mas, tô vendo que é tudo da boca pra fora, a fada saiu do padrão da sininho, já vem o preconceito. E para de gritar, meu ouvido já tá doendo. O tempo está em suspenso para gente ter essa conversa e ninguém vai te ouvir. Vê aí, pela janela.

Luíza se ergueu um pouco na cama, ainda de olho em Gabriela. Lá fora, carros parados no meio da rua, a vizinha congelada, segurando uma mangueira cuja água estava estática no ar. Passarinhos estacionados em pleno voo. Sentiu-se um pouco tonta, tinha comido um brownie de maconha dois dias antes, mas não podia ser, não tinha como ser. Voltou a encarar Gabriela.

— Fa.. fada madrinha não existe.

— Olha meu bem, o departamento de não-existência é com outra pessoa, tá? Eu vim aqui fazer meu trabalho e eu vou fazer.

— E qual… qual é o seu trabalho?

— Consertar essa tua vidinha de merda. Agora vai, me diz aí o que tu precisa pra ser feliz e realizada, eu vou ver o que eu puder fazer aqui. Mas olha, vou logo avisando, não sou o gênio da lâmpada não, é um desejo só e com limitações.

— Porra, mas aí tu me fode — Luíza já tinha decidido abandonar o senso de realidade — , tem muita coisa na minha vida para arrumar com um desejo só.

— Pois é, inclusive, fuder é um problema, né? O coelhinho aí que o diga — Luíza jogou o vibrador na gaveta e a fechou com violência. — Tu pode pedir um boy gato, é um desejo muito popular entre o público feminino da sua idade.

— Vá a merda! Ta me chamando de velha, porra?

— Não, tô te chamando de fã de cinquenta tons de cinza. Quero só lembrar a vossa excelência que o tempo está parado, mas o tempo está passando, viu? Eu não tenho o dia todo.

Luíza se concentrou por um momento. Precisava de um amor? Precisava. Mas também precisava de outras coisas. Um pouquinho de status, fama e dinheiro não fazem mal a ninguém. Resolveu ficar no clássico. Não gostava de cair no clichê, mas era o que tinha.

— Quero um príncipe. Bonito, rico e que me ame pra caralho.

— Hummm. Nesse molde aí vai ser difícil. Até tem um Orleãs e Bragança bonitinho e rico, mas fiquei sabendo que ele não curte a fruta, sabe? Sem falar de umas outras histórias aí, suspeitíssimas. Sobrou pouca monarquia no mundo, e nem inglês tu fala.

— Agora deu mesmo. Tu vem com toda essa propaganda de magia mas, quando chega na hora agá, fica botando dificuldade.

— Certo — Gabriela sacou um caderninho e começou a folhear — Olha, tem umas opções, mas esse completo ai não vai ser possível. Tem um príncipe saudita aqui, é bonito e rico, mas curte trabalho escravo e tu precisa usar burca, vai?

— O que? Nem fudendo.

— Beleza, e príncipe pobre, de família real mas deserdado, serve?

— Meu amor, de pobre, já basta eu. Faz o seguinte: remove o príncipe. Deixa só o rico e bonito. Não é possível que não tenha algum por perto.

— Pois é, até que tem muita opção de boy rico e bonito, mas quase todos já estão com o destino ocupado, e a tua prioridade no sistema é bem baixa…

— Prioridade no sistema? Como assim? Por que é baixa? Eu não sou uma boa pessoa, é isso?

— Não, calma, claro que você é. É meio egoistinha e acomodada, mas…

— Egoísta? Eu? Ah, vai se fuder! E acomodada porque? Só porque eu moro com meus pais? Tu por acaso sabe o preço do metro quadrado em Fortaleza? Do aluguel?

— Olha, Luíza, vamos trabalhar com verdades aqui, ok? Você se formou em direito empurrada, depois disse que ia estudar pra concurso. Estudou? Não. Passou uns dez anos fingindo que estudava. Não procurava emprego porque estava “estudando” e, quando abriu os olhos pra jesus e resolveu procurar, não tinha nada pra pôr no currículo. Me poupe, né?

— Eu não sou egoísta…

— Luíza, meu bem. Tu perdeu a poupança dos teus pais “empreendendo”, e depois veio com “é muito difícil ser empresário no Brasil”. Sendo que a tua lojinha de capa de celular faliu porque tu não entende merda nenhuma de como gerir um negócio.

— Mas é que…

— “Mas é que” nada, Luíza.

Luíza se recostou na cama, olhar fixo no chão.

— Porra, deixa eu ver esse príncipe saudita aí.