O Gato
Viu o gato saltar pela janela. Quando o olhar voltou-se ao centro da sala, percebeu o corpo, um dos sapatos a dois passos de distância. Concentrou-se no sapato. Vermelho, salto de alturas vertiginosas, manchado com um outro tom da cor. Ficou ali encarando o calçado, pensando em números. Trinta e oito? Quarenta? Definitivamente quarenta. Mas qual mulher calça quarenta? Perguntou a si mesmo recebendo uma resposta imediata do próprio cérebro: Várias, seu imbecil, agora chame a polícia.
Mas chamar a polícia? Um corpo na sua sala, o que iriam pensar? Não sabia se a conhecia, não conseguia tirar os olhos do sapato. Começou a compará-lo mentalmente a todos os guardados na memória. Aquele salto, logo percebeu, não batia com o seu círculo social. Era barato, vulgar, chamativo demais. Só podia ser da zona. Meu Deus! E se fosse da zona? Não conseguia lembrar. Não prestava atenção em sapatos quando estava por lá.
Uma puta morta no tapete persa. O tapete era falso, claro, mas ninguém sabia. Contava aos amigos ter custado uma pequena fortuna em uma lojinha centenária no Marrocos. Tinha comprado na vinte e cinco de março. Ninguém sabia, e por isso mesmo seria uma perda enorme, geraria um burburinho quando se soubesse, no country clube, sobre a destruição do persa dos Almeida por uma mancha de sangue, ou sua apreensão como prova em caso policial.
Olhou ao redor, não faltava nada. Todos os itens de decoração, inclusive os autênticos, estavam no lugar. Procurou o jarro verde e amarelo dado pela sogra, obviamente como um meio de livrar-se, ela mesma, da coisa. Estava intocado. Deus, era um corpo, mas nem a sorte daquela monstruosidade ser destruída na luta ele dera. Não que houvesse sinais de luta mas, independente de qualquer coisa, lamentou mentalmente seu infortúnio.
Só depois de vários minutos passando com o olhar de ponto A a ponto B, evitando consciente ou inconscientemente o ponto C, naquele contexto, C de corpo, de crime, de “como isso veio parar no meu persa?”, repousou a atenção sobre o problema concreto. As roupas não pareciam de puta. Sim, vestia uma blusa vermelha, mas o conjuntinho composto com a saia de pregas era sóbrio, decoroso, quase pudico. Apesar disso per si não significar nada, podia estar usando lingerie de puta.
As pernas, depiladas e musculosas, lhe fizeram despontar na memória um bom número de outras pernas, cujas donas, com seus nomes idílicos, serviam aos cidadãos de bem da sociedade na Casa Canárias, estabelecimento de alta qualidade e descrição, onde as moças eram limpas, obedientes e de boa índole. Esses nomes, no entanto, não podiam ser levados ao mundo real, pois ali sofriam severa metamorfose. De Valescas faziam-se Cleides, de Veronicas, Franciscas, perdia-se o glamour e encanto.
Não via-lhe o rosto, o corpo de bruços encarava a direção oposta. O cabelo era de um castanho recatado, mas havia algo de estranho no tom. Seguiu do cabelo ao pescoço, do pescoço aos ombros volumosos, dos ombros aos braços que lhe pareciam estranhos. Não eram braços de moça de sociedade, tão pouco lhe pareciam braços de quem trabalhava na lida.
Se os braços davam essa impressão, pior as mãos. Apesar do delicado do esmalte rosa bebê, eram grossas, de veias saltadas. Deteve-se no tamanho das unhas, que era um dos parâmetros que permitia a alguém investigar a moral de uma mulher, em importante confluência com o tamanho da saia. Ficavam ali pelo médio, um algo de moça solteira, à procura, mas de respeito. Eram aquelas unhas que prometiam ao pretendente, mas só depois de, pelo menos, conhecer-lhe os pais.
Não havia se movido um centímetro sequer em qualquer direção enquanto metralhava esses pensamentos. Temia se comprometer, contaminar a cena do crime com qualquer indício que pudesse pôr em dúvida sua inocência cristalina na questão. Talvez tivesse ficado ali parado para sempre, de pé como uma estátua de sal, não fosse o barulho baixinho de soluços que vinha da cozinha.
Outra torrente incontrolável de pensamentos lhe atingiu como uma inundação. Seria o culpado? Estaria esse indivíduo arrependido de tal forma, que aguardava ali para entregar-se às autoridades competentes? Por um momento temeu pela própria vida. E se o responsável pela tragédia abatida sobre seu tapete persa estivesse à espreita? Uma armadilha talvez? Não, não fazia sentido. Oportunidade para um tiro de tocaia já havia se apresentado há tempos.
Juntou os cacos de coragem que possuía e avançou da forma menos impetuosa que conseguiu em direção a cozinha. O cômodo estava à meia luz, e uma figura curvada ocupava uma das cadeiras. Cabisbaixa, uma mão na face enquanto a outra pendia segurando um atalho rápido para morte esculpido em metal cromado, com o cano ainda quente.
Reconheceu de imediato o conjunto único ali composto por aquela camisola de estampa floral, uma touca de seda negra e uma máscara facial em tom esverdeado formada por uma combinação caríssima de cremes contrabandeados do Paraguai. A mulher com quem dividira os últimos trinta e seis anos chorava e soluçava de forma contida e elegante, como é de se esperar de alguém na sua posição.
Já ia começar a romaria de indagações quando, no cruzar dos olhos com as marejadas janelas da alma da mulher, uma informação essencial, desprezada até aquele momento, saltou de algum canto escuro e esquecido da sua mente e lhe arrebatou o lóbulo frontal.
Voltou à sala correndo. Deu a volta no corpo já despido de qualquer preocupação com a preservação da cena. Ajoelhou-se no sangue, encharcando os joelhos da calça e as pontas do roupão de linho azul. A mão trêmula afastou do rosto pálido sobre o tapete a mecha de cabelo que lhe ocultava a identidade. Por mais lisa e bem feita que estivesse a barba, por baixo do batom discreto e da maquiagem leve era impossível não reconhecer o primogênito dos Almeida.
O choque foi tamanho que, por um momento, dissolveram-se todas as preocupações e conjecturas, restando-lhe na mente um único e insistente pensamento: a família não tinha um gato.