Com as mãos tremulas, ela apanhou sobre a cômoda o envelope pardo marcado com o seu nome. O coração já pressentia o conteúdo, mas essa antecipação não foi suficiente para fazê-la desistir de lê-lo, para destruí-lo e fugir daquela verdade incomoda. Não, o desejo pelo o último contato com o marido era maior.

“Querida Júlia,

Não tenho como justificar as minhas escolhas apenas com algumas linhas num pedaço de papel, ainda mais considerando a minha incapacidade de pôr em palavras a maior parte das circunstâncias por trás dessas escolhas. Apesar disso, não pude me furtar a tentativa de dar algum consolo a você e ao nosso filho frente a todo o sofrimento causado pelo caminho imposto a mim pelo destino.

A sua fé tão sincera, da qual sempre tive inveja, atribuiu o meu retorno a um milagre. Dada a situação, não havia como discordar, mas é essencial fazer um alerta: nem todos os milagres compartilham a mesma origem. Ao contrário do relato repetido por mim em tantas entrevistas, construído deliberadamente nos moldes dos românticos do século XX, não foram as lembranças e o amor à família que me possibilitaram resistir ao longo jejum, ou me impediram de ceder a desesperança frente a uma aparente morte certa.

O mundo não permite a fatos atrapalharem uma boa história. Não interessa se, ao sair daquele buraco, os médicos me encontraram em relativa saúde, apresentando o mesmo peso e com nada além de uma leve desidratação. Ou se a minha aparência, exibida nas imagens do resgate, era a mesma de sempre. Todos amam uma boa história, e ninguém atentou-se a esses detalhes, a não ser você.

Vi nos seus olhos, já no primeiro momento após retornar ao mundo saído das entranhas escuras da terra, um sentimento de intensa estranheza. Em alguma lugar da sua mente você entendia o homem ali, retornando com um largo sorriso aos seus braços, como essencialmente diferente do homem que havia adentrado aquela mina vinte e três dias antes.

Você percebeu meu sono inquieto, as minhas procissões pela casa vagando na penumbra, o meu olhar perdido no ângulo do canto oeste do quarto, onde surgiu aquela mancha escura esquisita sem origem aparente. Viu o comportamento do gato, que me tratava como um total estranho, atacando ou fugindo quando se deparava comigo, e até mesmo o jeito como Raul se afastava. Ele tinha medo de mim.

Por algum tempo, lutei comigo mesmo para ignorar todas essas coisas. Cogitei a possibilidade de estar perdendo a razão, assim como cogitei quando estava na minha prisão de pedra. Mas, como todo homem adentrando a loucura, neguei com todas as forças essa hipótese e tentei enterrar aqueles dias o mais fundo possível na minha memória. Me convenci de que tudo aquilo não passava de delírio, e tomei todos esses pequenos sinais apenas como paranoia.

Mas, naquela noite, o vulto no quarto não era um ladrão. Não era sequer humano. Você lembra do cheiro? Um odor liso e convexo? Talvez não, pois é difícil pra mente guardar referencias para as quais ela não foi construída. E nós não fomos criados para entender aquilo, eu sei disso. Foi uma escolha evolucionária feita milênios atrás. A humanidade decidiu, inconscientemente, não olhar para o abismo, e assim evitar ser olhada de volta.

Mas eu olhei, quando estava lá embaixo preso num espaço do tamanho de um armário, envolto pelas trevas e por um silêncio esmagador, onde as batidas fracas do meu coração retumbavam como passos de um gigante. Eu olhei para o abismo, e agora não posso escapar à sua reação inexorável.

Depois daquela noite passei a acreditar ter trazido comigo os obreiros do seu milagre. Sequer sei se o plural se aplica nesse caso, se são aplicáveis os conceitos de indivíduo e grupo, na verdade não sei de quase nada. Mais eu ainda me negava a reconhecer o agravo lento e gradual de um sentimento agudo de desconforto gerado em mim pelas coisas mais simples, uma fechadura, um letreiro neon ao longe ou o toque felpudo de uma toalha de banho. Minha natureza tinha mudado, o mundo me rejeitava mais a cada dia.

Então um dia era um vulto, noutro a maldita mancha no teto crescia, e crescia, e crescia, não obstante todo o meu esforço para limpá-la. Na semana seguinte o gato sumiu de casa e as plantas do jardim começaram a morrer. Depois de algum tempo as pessoas passaram a atravessar a rua, como por instinto, quando se aproximavam da casa. Mas a negação ainda era meu refúgio, meu conforto, e para meu total arrependimento só desisti desse conforto na noite em que Raul acordou gritando.

Minha querida, quisera eu poder explicar tudo, ou ao menos poder entender tudo. Porém, só posso expor a minha suspeita de ter me tornado parte daquilo, e agora os atraio para mim como para um grande ímã. Esteja onde estiver, minha presença significará a presença deles, e a presença delas é de tal forma inconcebível para a nossa realidade que a corrompe, a desintegra lentamente.

Sendo assim, para proteger você, nosso filho e talvez todo o resto da humanidade, restou-me apenas uma opção. Vou retornar a aquele lugar escuro e colocar sobre mim uma grande pedra, trancando-os junto. Não pense o pior, isso não é um suicídio. Estarei vivo, talvez não na definição comum dessa palavra mas estarei. Por favor conte ao Raul o quanto o pai o amava, e lembre-se sempre do quanto te amei.

Roberto.”

Julia amassou o papel entre as mãos enquanto as lágrimas escorriam. Uma miríade de sentimentos lhe atingia: Raiva, tristeza, saudade. Pensou no filho no quarto ao lado, quieto e imóvel, não havia mais acordado do sono, de certo ainda estava preso no pesadelo apesar de já não tentar mais escapar dele ao gritos. Lhe veio outro sentimento: solidão. Com quem dividiria aquilo tudo? Não havia mais ninguém.

Por fim, virou-se e olhou para o canto oeste do quarto, para mancha enorme cujos veios já se estendiam por toda a altura da parede. A região enegrecida agora aumentava a olhos vistos, num pulsar compassado, quase imperceptível, parecendo acompanhar as batidas do coração dela. Lhe veio então o derradeiro sentimento, aquele que a acompanharia dali em diante e para sempre.