Todos os dias, ao voltar do trabalho, a garota estava perto do ponto de ônibus. Insinuava-se para ele com um “quer se divertir hoje, amorzinho?” ou mostrava o seio e dizia “vem cá, você não vai se arrepender”. Mas Jorge, rapaz de família, bem casado, evangélico e temente ao Senhor, resistia àquela tentação do demônio.

Aos domingos, desabafava com o pastor. Contava as durezas da vida e a dificuldade com Julinha, sua mulher, que desde o nascimento do segundo filho não mantinha mais interesse nos assuntos conjugais. Passava as noites assistindo novela mexicana e lendo revista de fofoca. Chegando à cama, quando o marido fazia menção a qualquer envolvimento carnal, declarava seu cansaço da lida diária, virava pro lado e dormia.

O pastor aconselhava Jorge, reforçava o fato dele já ser pai de dois. Se Julinha não estava mais cedendo aos avanços do rapaz era porque o senhor não pretendia lhes dar mais filhos por agora. Jorge fingia aceitar, mas ia pra casa com aquela pontinha de ódio pela mulher, pelo pastor, e por Deus. Sentimento não admitido jamais, nem pra si nem pra ninguém.

Trabalhava longe, chegava em casa tarde da noite e comia da janta requentada deixada pela esposa no microondas. Raramente pegava os filhos acordados. Gostava de ir ao quarto das crianças antes de dormir para lhes dar um beijo. Seu preferido era o filho, Marquinhos, o caçula, no qual se reconhecia muito. A menina, já maiorzinha, era muito a mãe e isso gerava no pai um desgosto por tabela. Era mais uma das coisas jamais admitidas por ele para si mesmo. Preferia acreditar ser assim porque menino, para o pai, é mesmo melhor. Para fazer coisas de homem, jogar futebol, ensinar a pescar, mesmo Jorge nunca tendo botado isca em anzol na vida. Apesar de tudo, beijou e ajeitou a coberta da menina também e foi para o quarto do casal.

Observou Julinha. Aparentemente dormia. Mas o marido sabia ser só aparência. Era só pra evitá-lo, sabia. Deitou-se ao lado da esposa, o corpo cansado não custou a relaxar e o pensamento foi se soltando da vontade do dono, levando-o a lugares onde jamais iria quando em vigília. Viajou até os seios pequenos e duros de Samantha, as coxas grossas e bronzeadas. Viajou até o pecado e, no embalar do vai e vem com a parceira onírica, dormiu.

Dia seguinte, sábado, trabalho puxado. Pensava em Julinha pois a moral não permitia pensar em Samantha. Terminou o serviço mais cedo e planejava pegar um ônibus mais vago, uma janta e uma esposa mais quentes. Conseguiu os dois primeiros, mas a mulher foi pega no meio da hidratação no cabelo, fazendo as unhas com um esmalte claro e discreto, como convinha a uma moça direita. Muito diferente do vermelho sangue de Samantha nas unhas, na boca e provavelmente em outros lugares de interesse.

Esperou pacientemente o ritual de beleza da esposa enquanto assistia a um programa policial onde um soldado gordo baforava cigarro sobre um corpo. Menina nova. Maquiagem pesada. Provavelmente era da vida. O assassino a dois passos dali, ainda coberto de sangue, chave de fenda na mão, pedaços de intestino salpicados pelo rosto, caso fácil. Ao ser questionado pelo repórter, o rapaz respondeu que a mulher era o demônio, vinha para acabar com sua família e com seu casamento. “Ferreira, bota esse monte de merda no camburão”, esbravejou o gordo. “Certo sargento. Entra aí porra!”. O soldado colocou o homem pra dentro da viatura com um empurrão violento. “Uma pessoa dessas não tem Deus no coração”, disse Jorge. A esposa fez coro enquanto lixava as unhas do pé.

Passado o jornal, a novela, as crianças na cama, Jorge foi abordar a mulher. Nova recusa. Estava “naqueles dias”. Falou exatamente dessa forma, sem nenhum floreio, nenhuma animação ou pesar na voz. Jorge virou para o lado e fechou os olhos, envolvendo-se nos pensamentos pecaminosos com Samantha. Uma ponta de ódio perfurou a casca da pseudo moralidade gerando um “foda-se” mental. Achou-se no direito, contra a bíblia, a igreja e Deus, de fantasiar pelo menos.

A ressaca moral de domingo foi terrível, ajoelhou-se e rezou pedindo perdão pelos maus pensamentos. Acabou voltando pra casa sozinho, pois Julinha havia deixado as crianças na sogra e ficaria um pouco mais para ajudar os obreiros a arrumar a igreja. Foi descendo a rua lentamente no carro velho, passou pela padaria e chegou à esquina da vida. Lá estava Samantha, a saia de tão curta era quase um cinto, meias vermelhas, umbigo à mostra, e um top mais pra duas ou três linhas estreitas sobre o dorso do que propriamente uma peça de roupa.

O carro foi diminuindo, à revelia de qualquer consciência do motorista, até parar. Depois de uma conversa curta e irrelevante a moça adentrou o veículo. Competente e pró-ativa, já iniciou ali mesmo o atendimento enquanto o freguês dirigia rumo ao motel mais próximo. Chegaram ao quarto. Houve camisas rasgadas, botões voando, urros e práticas com certeza desaprovadas pelas escrituras sagradas. Jorge passou o resto da semana com uma dorzinha muscular. Julinha, empolgada com a nova novela da Record, nem percebeu o sorriso e o desinteresse do marido.

Passaram a encontrar-se aos domingos, sempre depois do culto. O engajamento crescente da esposa nas coisas da igreja facilitava o horário vago. Eram duas horas de pecado pagas a duras penas em seis prestações de oração e súplica durante a semana. Jorge chorava em segredo, rogava a Deus e prometia a si mesmo nunca mais ver Samantha, contar tudo à esposa e pedir perdão. Mas, ao fim do culto de domingo, ao passar da padaria, dobrando a esquina da vida, acabava sempre parando. Já nem precisava dizer nada.

E num desses domingos o nefasto despontou. Depois das línguas, das posições insólitas e das camisinhas sabor tutti frutti. Quando Samantha já guardava o pagamento, deu a notícia, acreditando no torpor do gozo como um bom lubrificante para facilitar a entrada daquela realidade incômoda. Contou-lhe ser aquela a despedida, tinha conhecido um italiano no ponto, iria se casar e morar na Toscana.

Jorge não brigou, não gritou, nem esboçou qualquer reação esperada, parecia conformado. Enquanto a moça desavessava a calcinha, levantou-se da cama, foi até o cabide, abriu a bolsinha de ferramentas, a qual carregava no cinto para todo lugar, e pegou uma chave de fenda.