Valeria sentia os olhos do sistema na nuca. Aquela era sua terceira avaliação abaixo da média em menos de um mês, e seu escore geral ameaçava chegar perto do limite mínimo. A perda de mais um décimo acarretaria numa visita compulsória a um Centro de Bem Estar.

Tentava se conter, mas o sorriso mecânico e a cortesia automática falhavam com uma frequência cada vez maior. Um impulso de sinceridade tomava conta dela, e as palavras definidas com tanto cuidado no roteiro de convivência eram substituídas por comentários ácidos e verdades incômodas.

Durante o trabalho na loja, tremia a cada segundo com a possibilidade de atender qualquer cliente com uma avaliação muito alta, geralmente menos preocupados com o protocolo. Era um equilíbrio delicado, avaliar mal alguém com uma pontuação muito alta podia, por si só, ser um motivo de perda de pontos. Assim como ser mal avaliado por uma dessas pessoas pesava muito mais, podendo facilmente gerar um efeito dominó de antipatia.

Para seu infortúnio, saber de tudo isso não foi empecilho para a atitude rude, até mesmo hostil, à qual se sentiu impelida quando uma cliente quatro-ponto-oito a fez desarrumar todos os sapatos do estoque e ensaiou sair sem comprar nenhum. A cliente, visivelmente assustada, fez o que qualquer um faria numa situação de auto defesa: Com um gesto de mão para o seu comlink, deu a Valeria um violento “escore mínimo”.

Os alarmes do prédio soaram, e o comlink da vendedora bloqueou o acesso a qualquer serviço não essencial. Uma enorme tarja vermelha exibia na tela ocular a mensagem: “Fique parada e aguarde recolhimento pelo Centro de Bem Estar mais próximo.”. Valeria, como parecia ser seu destino de agora em diante, desobedeceu. Correu porta afora sem qualquer plano, tendo como única certeza a necessidade de evitar a reeducação.

Esse novo imperativo era inexplicável. O ritmo cardíaco acelerado, cada neurônio posto em ação buscando uma forma de escapar, ou, pelo menos, de adiar ao máximo a captura. Só conseguiu imaginar um lugar com baixa densidade de câmeras e sensores de presença. Pôs-se a caminho, mas ainda havia um problema.

Abrigou-se num beco perfeitamente limpo entre dois prédios. Enfiou os dedos nos olhos retirando as lentes de contato, jogou-as no chão e as esmagou sob o salto. Eles não poderiam mais rastreá-la sem o comlink ou, pelo menos, isso dificultaria o processo. Estranhou andar pelas ruas sem os indicativos óticos. Sem a sobreposição dos anúncios e acessos virtuais, tudo parecia muito cinza.

Andou durante quase uma hora, escondendo-se de câmeras e drones da melhor forma possível, até localizar uma entrada para o sistema de esgoto discreta o bastante. Adentrou as entranhas surpreendentemente bem iluminadas da cidade. Decidiu ficar ali até a poeira baixar, talvez até a noite, antes de tentar voltar para casa e recuperar suas coisas.

O plano parecia ter funcionado. Até a noitinha, nem um sinal dos agentes do Centro de Bem Estar. Com a adrenalina mais baixa, Valéria lembrou-se da família. Estariam preocupados? Talvez chocados com a possibilidade da filha ter se tornado uma criminosa comportamental? Os feeds de notícias só davam notas muito breves sobre os esparsos casos de distúrbios comportamentais, e tudo sempre terminava com a remoção do indivíduo para um Centro de Bem Estar e uma futura reintegração à sociedade. A taxa de sucesso era de cem por cento.

Claro, haviam boatos. Vez ou outra alguma conta anônima insinuava a possibilidade dos tratamentos oferecidos não serem exatamente indolores, mas ninguém levava esses perfis muito a sério, e eles eram rapidamente eliminados pelo sistema.

O estômago de Valéria começou a reclamar. Seria impossível comprar qualquer coisa sem o comlink. Sua melhor chance era pegar a comida guardada no apartamento. Com um senso de orientação surpreendente para algo que nunca tinha sido usado, a moça conseguiu divisar a maior parte do caminho para onde morava pela rede de esgotos. Saiu em um bueiro a poucos metros do prédio.

Se a palavra “ódio” tivesse correspondente para ela, poderia dizer que sempre odiou morar no térreo. Andares mais altos eram reservados aos escores mais elevados. Apesar disso, naquelas circunstâncias, a localização do apartamento era uma dádiva. Esgueirou-se rumo à janela dos fundos e abriu-a lentamente. Não havia tranca, não era necessário. Entrou na cozinha escura e, sem o comlink, o lugar não detectou sua presença.

Enquanto comia uma das rações prontas, guardou as outras numa sacola. Depois foi ao quarto e colocou todas as roupas que pôde numa bolsa de viagem. Já se preparava para sair pela mesma janela quando escutou um barulho, vinha da entrada da frente. Escondeu-se dentro do armário e fechou a porta.

Pelas persianas do móvel, pôde ver quando as luzes do apartamento acenderam, e ouviu a saudação: “Boa noite Valeria, bem vinda”. Já ia protestar contra a falta de sentido do sistema tê-la detectado só agora quando escutou outras vozes.

— Filha, você está bem? Tem certeza?

— Claro mãe — Valéria respondeu enquanto entrava no quarto, tirou a jaqueta, a mesma que Valéria estava vestindo, escondida no interior do armário — O pessoal do Centro de Bem Estar disse que foi só um desequilíbrio químico, já estou me sentindo normal de novo.

O sangue de Valéria ferveu, saiu do armário como um animal raivoso e saltou sobre si mesma com as duas mãos no pescoço. Um ganido agudo saiu da boca da sósia que se debatia descoordenada tentando defender-se.

— Você não sou eu! — Valeria gritou no exato momento em que a mãe apareceu na porta do quarto — Eu sou eu!

Estática, a pobre senhora não sabia como reagir diante da cena. Duas versões idênticas da filha se digladiavam sobre o carpete impecável. Estava prestes a interferir quando um círculo perfeito foi cortado no vidro da janela do quarto, pelo qual entrou um drone milimetricamente esférico.

O drone lançou um raio azul de rastreio sobre o quarto, atingindo as duas Valerias, que pararam por um momento sua contenda para entender o que estava acontecendo, e a mãe. Antes de alguém poder esboçar qualquer reação, um pequeno compartimento se abriu no corpo da esfera de metal, de onde saiu um laser de potência inesperada acertando todos os seres vivos naquele quarto bem entre olhos, abrindo em cada uma das cabeças um perfeito orifício cônico.

— Objetivo concluído, distorção primária corrigida — Informou a máquina, através da conexão com o sistema central — Duas causalidades confirmadas. Solicitar ao estoque uma segunda reposição para o indivíduo 24ry, e uma primeira reposição para o indivíduo 23cd.