Jota revirou-se na cama, transbordando de auto piedade. Tentava expor ao mundo a terrível moléstia da qual padecia, mas fracassava em convencer até a si mesmo. O rosto se iluminava, intermitente, com a luz da tela do celular. Não tinha forças pra começar nada, tão pouco conseguia deixar de responder a cada tremida ou apito de comando do aparelho.

Esperança talvez, suave e delicada. Jota parecia ter crescido acreditando demais no refrão do Cidade Negra: todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite, sábado a noite tudo pode mudar. Era uma terça, mas foda-se. De repente a mudança também estava naquele fim de festa, procurando alguma coisa pra não ir pra casa no zero a zero, vai saber.

Tirou a blusa, o ventilador já não dava conta, simplesmente fazia circular o ar fervente do quarto. Sentia-se como um frango numa churrasqueira de padaria, mas estava indisposto demais para girar.

Surfou por todos os perfis de redes sociais que possuía. Não sabia bem porque as mantinha, eram uma forma moderna de auto flagelação, mas a recompensa de dopamina o mantinha como um rato, consumindo o sucesso e os corpos artificiais. O fim da jornada, porém, sempre o levava ao perfil dele.

Não tinha coragem de puxar conversa, evitava até mesmo curtir as postagens para não chamar atenção. O rapaz em questão era um ex-colega de escola, pelo lado de Jota, um pouco mais. Tinham perdido o contato depois do fundamental, e essa lembrança tinha ficado guardada em alguma gaveta esquecida da memória, até o surgimento das redes sociais.

Fazia um ano que o perfil tinha sido indicado, como por magia, como um contato possível. Claro, não era magia, era um algoritmo sofisticado desenvolvido para aprisionar e escravizar as pessoas na vigília da vida alheia. A vida alheia virtual, aliás, era muito mais interessante do que a realidade, e por isso mesmo muito mais viciante.

Quando se deparou com o perfil, de imediato lhe veio uma lembrança. Um momento, ele não tinha certeza se era real, ou se os meandros do tempo lhe confundiam a cabeça. A dúvida vinha do fato em si: um beijo. Nada demais, um selinho e um abraço. O primeiro de todos, ali com os seus onze anos.

“O primeiro beijo? Não pode ser”. Como um momento tão marcado a fogo na vida podia ter sido relegado a uma nota de rodapé do cérebro? Como alguém esquece uma coisa dessas? Era uma dúvida honesta. Preferia acreditar ser uma memória inventada. Mesmo assim, não conseguiu mais se libertar do interesse.

Passou a acompanhar toda a vida online do rapaz. No começo, meio culpado, meio a contragosto, quase como um fumante acendendo um cigarro escondido. Depois de um tempo, o pudor acabou. Viu passar namoradas, viagens, empregos. Uma miríade de mudanças. Sem jamais encontrar coragem para interagir.

Agora ali, no fim de noite, revia o dia virtual do rapaz. No post mais recente, uma foto com flash no espelho da academia. Clichê, mas aquele tanquinho sexy, exibido como um aviso luminoso de “estou disponível, dê uma olhada no material” poderia ser lugar comum o quanto quisesse. Óbvio, gente comprometida também tira foto assim, mas a legenda se encarregava de destruir qualquer possibilidade de dúvida.

O coração de Jota palpitou, era uma arritmia conhecida, aparecia sempre que o status do rapaz mudava para solteiro. Sentiu um calor, mas não porque o quarto parecia ante sala do inferno, era um fenômeno com outra origem. Ficou estático, dedo pendendo sobre a tela numa vontade pulsante de fazer alguma coisa, qualquer coisa, uma coisa indefinida. Soltou o telefone, virou pro lado e tentou dormir.

Sonhos, flutuando entre o erótico e o pós-moderno, atormentaram-lhe a noite. Acordou ainda com febre, empreendeu uma campanha de auto ajuda para convencer o próprio corpo a sair da cama. Havia algum café na garrafa, frio e meio ralo, marca registrada da mãe. Ela não estava em casa, quarta era dia de mercado. Comeu qualquer coisa e arrastou a carcaça de volta pra cama. O frescor da manhã devia ter tido algum imprevisto, não pode aparecer. O clima de Sahara continuava reinando no quarto.

Quando a mãe chegou, lhe pôs o termômetro. A febre cedera um pouco, mas ainda estava lá. Empurrou-lhe alguns comprimidos garganta a baixo e foi cuidar de outros afazeres.

O dia passou como uma aula de estatística: lento, enfadonho e impulsionando questionamentos sobre o rumo escolhido por você para sua própria vida. Jota ligou a TV, o conteúdo realmente não importava, só o som cadenciado e a sequência de coisas coloridas se mexendo já era suficiente para enganar os sentidos por um tempo indefinido.

Foi arrancado da catatonia voluntária por um grito do celular. A noite já tinha se incendiado, despercebida, e a máquina queria atenção. Urrava por cliques. Depois de uma volta olímpica por toda a confusão que a ultra conectividade tinha a oferecer, chegou ao ponto final de sempre.

O rapaz tinha fotos novas, vídeos novos, e algumas poucas linhas desinteressantes a serem lidas. Não levaria nem um minuto pra ver tudo, não fosse a obsessão de Jota por consumir cada detalhe, cada objeto na cena, super processar todas as carinhas amarelas e referências.

Numa das fotos, bem ao fundo, à beira do imperceptível sem um zoom de oito vezes, um porta-retrato exibia o rapaz com o uniforme do primário. Primeiro dia de aula, talvez. O cérebro de Jota rangeu, estalou. Queimando a última lenha, chegou à estante e fuçou até encontrar.

Ainda estava lá, registro de uma excursão. Todas as crianças, e ele e o rapaz, lado a lado, encarando a lente. Rastejou de volta ao quarto. Tirou uma foto da foto e postou usando algum texto irrelevante. Largou o telefone e se entregou à exaustão.

Quando o sono já abria um flanco nas muralhas da consciência, foi acordado de sobressalto pelo aparelho. Uma mensagem dele: O Rapaz. A mesma foto da excursão, mas agora com os dois circulados em vermelho. Abaixo dela, o texto: “Oi, isso pode parecer um pouco estranho, provavelmente você não lembra de mim. Mas sou ai, do seu lado, e eu me lembro bem de você”.

Lá fora, em algum momento, a chuva havia começado a cair. Uma brisa fria escorregava janela adentro. Para Jota, porém, fazia mais calor do que nunca.

Esclarecimento: Esse texto, assim como seu título, é uma brincadeira, uma homenagem ao meu amigo Jota Oliveira do Tiro no Pé.