Era uma profecia, a tradução indicava o fim do mundo pra dali a dois dias. Rogério tirou os óculos e coçou a barba. Quatorze meses metido no meio da floresta, calor, mosquitos do tamanho de um boeing, malária, bolsa atrasada. Ele tinha superado tudo na esperança de encontrar um artefato realmente significativo, algo para provar a diversidade cultural dos Yatan em relação ao resto das Américas. E agora, a grande descoberta era uma cópia mal engendrada das profecias de apocalipse Maias.

Embalou a tábua de pedra com cuidado, no fim das contas ainda podia ter algum valor histórico. Dia seguinte, bem cedo, arrumou as malas e pegou uma chalana para Rio Branco, e de lá um voo com um número inacreditável de escalas. Não tinha como pagar nada mais direto. Chegou ao destino depois de dezesseis horas espremido na classe econômica, a esposa não foi esperá-lo no aeroporto.

No táxi, o motorista puxou conversa sobre o calor, a economia e o clássico rei, mas Rogério estava sem cabeça pra papo furado. Foi resmungando monossilabicamente até chegar ao destino. A corrida tinha sido cara, a matemática ainda lhe ocupava quando girou a chave na fechadura. Entrou e, por um instante, fechou os olhos, sentiu-se em casa.

Abriu os olhos, Juliana estava na sala, esperando. O rosto da mulher descortinava uma mensagem óbvia, a qual Rogério insistiria em negar a existência até ouvir com todas as letras. Talvez continuasse negando até depois disso. Aproximou-se da esposa como quem cerca a toca de um bicho feroz. Sentou-se na poltrona velha, mãos entrelaçadas sobre o queixo, mas antes de poder dizer qualquer coisa foi fuzilado: “precisamos conversar”.

Os detalhes não são importantes, houve tudo que se espera de uma conversa dessas: raiva, choro, consternação, apelações, gritos, e súplicas. Quase tudo vindo de Rogério. E no fim, o resultado era: Juliana queria o divórcio. Os motivos fluíam como um grande esgoto a céu aberto e fediam demais pra serem ignorados.

Com a mala ainda feita, Rogério saiu batendo a porta. O destino era a casa da mãe, o último refúgio de todo homem. Isso também tinha seu custo, claro, só o martírio de ter de recontar meia hora depois todo o acontecido, sob a chuva de “eu avisei” em várias embalagens diferentes vinda da mãe, já devia pagar a hospedagem para umas dez pessoas.

Depois de tudo acabado, finalmente pode tomar um banho, trocar de roupa, e chorar copiosamente na cama de solteiro. Era melhor aproveitar o momento para desmoronar, a tarde teria uma reunião na universidade, burocracia, papelada, enfim, obrigações insensíveis ao estado emocional de qualquer um.

Depois de recusar várias vezes o agasalho que a mãe insistia para levar, colocou uma camisa camuflada horrorosa e uma calça amarrotada e foi encarar o chefe do departamento. Não houve gritos, a não ser dentro da cabeça de Rogério, enquanto a junta questionava os milhares de reais gastos cujo o resultado era aquela pedra, filha única de mãe solteira, cuja existência não acrescentava nem o zero esquerda à história das civilizações americanas.

O cancelamento da bolsa, apesar de esperado, doeu. Com a diminuição da intensidade do esporro, Rogério já se levantava quando um “onde você vai?” o atingiu pelas costas. O rabo quente voltou para a cadeira. Não só a bolsa seria cancelada, como a pesquisa seria desconsiderada como parte do doutorado. Ele teria de encontrar outro orientador e começar do zero.

Depois de meia hora de discurso, já nem ouvia mais. O olhar estava perdido na dobra escura da saia de Silvinha, a secretária do chefe de departamento, que anotava tudo na ata. Era aquele tipo de saia curta que ilude com a promessa de se ver alguma coisa, mas não cumpre, pois é dois ou três centímetros longa demais para isso.

Quando o assunto entrou no processo administrativo que Rogério ia sofrer por conta de problemas na comprovação de gastos, a mente já ia longe. Lembrava de quando tinha conhecido Silvinha, nas épocas de grêmio estudantil. Como, anos depois, ao se encontrarem por acaso no departamento, a alegria dela murchou quando ele falou da esposa.

Rogério sentiu um lampejo de esperança quando o olhar se cruzou com o da moça. Os olhos dela não chegavam a ser de ressaca, mas com certeza a maré estava vazante. Sentiu o dedo anelar, tinha esquecido aliança na casa da mãe. Ela percebeu.

Passada uma eternidade, quando todos já tinham deixado a sala, teve vontade de se vingar de tudo atirando, com fúria, a tábua de pedra ao chão. Imaginou a coisa se espatifando em milhares de pedacinhos e sorriu, depois guardou a pedra e o sorriso, precisava de forças para voltar para a cama de solteiro.

Houve alguma surpresa quando, virando o corredor, deu de cara com Silvinha esperando, encostada num canto. O mesmo olhar. Ela queria saber se ele estava bem. A conversa foi sendo levada por ambos até a briga e o divorcio. Silvinha fez um ar triste pouco convincente e se pôs a disposição como ombro amigo, deixando implícita a possibilidade de incluir algumas outras partes amigas também.

Rogério a convidou para um café, mas, no estacionamento, já estavam se pegando feito dois adolescentes. O carro acabou sendo conduzido a um motel mesmo. Chegaram ao quarto se rasgando, Rogério na ânsia de esquecer sua hecatombe pessoal, e Silvinha desesperada para libertar um sentimento guardado com muita naftalina desde a juventude.

Boca, língua, dedos, nada. Silvinha foi ao banheiro, até com ela de costas era evidente a cara de decepção. Rogério ficou ali, mole. Pegou a bolsa e tirou o artefato de dentro, deitou-se na cama segurando o objeto na altura dos olhos. Contra a luz do teto, notou uma passagem desgastada, antes invisível, agora posicionada depois das palavras “fim do mundo”. Forçou a vista, a palavra era estranha, foi traduzindo foneticamente as sílabas: “de-ro-ge-ri-o”.

— Filhos da puta.