Qual não foi minha surpresa ao notar tudo ainda em seu lugar. Outdoors anunciando desodorantes milagrosos, carros, apesar de imóveis, infestando as ruas como de costume. Prédios intactos e, naquela padaria do outro lado do quarteirão, frangos ainda girando na máquina.

Nos últimos dois dias, toda a humanidade tinha estancado em frente aos seus aparelhinhos para, juntos, apavorar-se e admirar-se com as coisas habitando o céu. Do intuito das luzes desconhecidas e insondáveis apenas uma mensagem foi recebida, de um modo diferente para cada um: Quarenta e nove horas, trinta e quatro minutos e vinte e três segundos. Tinham vindo para nos levar a todos.

O desespero tomou conta do mundo, habitantes dos campos correram às cidades, os das cidades correram aos campos, os bêbados correram as igrejas e os fiéis aos bares. Mas, inevitavelmente, ao fim daquela contagem, realizada segundo a segundo em cada canal de TV e estação de rádio do planeta, todos se foram. Levados a lugares ignorados, de formas ignoradas, sem qualquer explicação ou insinuação de sentido. E agora, depois do vigésimo quarto segundo, ainda estou aqui.

Não pude acreditar de imediato ser eu o único entre quase sete bilhões de pessoas a ficar para trás. Mas longos dois anos de viagens, tentativas frustradas de contato e buscas infrutíferas acabaram me convencendo dessa realidade insólita.

Apesar de não estar totalmente desamparado, já que muitas das criações do homem sobreviveram a sua partida e, provavelmente, me permitirão viver confortável e seguro até o fim dos meus dias. A expectativa de aguardar esse momento em completa solidão me parece cruel. Apesar disso, não tenho a coragem para mudar esse destino.

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Coisas estranhas me invadem a mente, a solidão contínua por treze anos seguidos começa a me fazer ver coisas, ouvir coisas. Percebo algo se esgueirando pelas sombras na minha mente, me seguindo, aparecendo como uma série de coincidências, pressentimentos e outras idiossincrasias causais. Talvez eu já esteja ficando louco nesse ponto, mas sinto como se fosse tudo muito real.

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Quarenta e três anos já se passaram desde do dia do evento, sinto minha percepção mudando. Me dou conta da presença de padrões cada vez mais intrincados, padrões tão complexos que me nego a acreditar que uma simples mente humana pudesse captar. Posso prever eventos simples com um alto grau de precisão e, às vezes, me pego aplicando conhecimentos as quais não possuo de forma tão natural quanto respirar. Essas mudanças me assustam, mas, ao mesmo tempo, me deixam maravilhado.

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Meu corpo parou de envelhecer, ou, pelo menos, aparenta isso. Minhas necessidades físicas estão diminuindo a cada dia. Me alimento e bebo muito pouco para sobreviver. Sou um velho de quase noventa anos capaz de correr vários quilômetros, escalar montanhas, e realizar outras proezas físicas sem dificuldade. Já não experimento a doença há pelo menos três décadas. A natureza do processo pelo qual estou passando permanece um mistério, mas o seu caráter supernatural é evidente.

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Centésimo trigésimo segundo ano desde o evento. Com exceção de personagens mitológicos, sou sem sombra de dúvida o humano de maior tempo de vida na história da terra. Minhas capacidades de projeção astral recém dominadas me permitem vasculhar o planeta sem a necessidade de mover meu corpo físico. A habilidade de entender os padrões da trama espaço-temporal me fazem crer que, cedo ou tarde, o propósito e o funcionamento de todas as coisas me será revelado por completo. A análise dos vórtices de divisão temporal já me dão todas as respostas sobre as questões do meu futuro próximo.

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Meus poderes de alteração da realidade exterior, cujos primeiros indícios surgiram há aproximadamente um século, chegarão ao seu ápice. Preparo-me para galgar o caminho inevitável em direção à uma união com a consciência cósmica universal. Até lá, com certeza, já terei obtido todas as respostas relativas tanto ao meu estado atual como ao incidente a seiscentos e dezessete anos atrás. Ainda mantenho meu corpo físico, mas tornei-me senhor da matéria.

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Ontem tive meu primeiro contato superficial com uma consciência extrafísica, uma entidade fora do padrão vibracional dessa dimensão. Ainda tenho dificuldades para captar totalmente as nuances das mensagens transmitidas nessa comunicação, mas aparentemente elas têm relação com o acontecido a dois mil trezentos e doze anos atrás, quando todos os outros indivíduos da minha espécie desapareceram sem deixar vestígios.

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Meu corpo foi sublimado, me desprendi da matéria e agora vivo inteiramente como um ser de puro pensamento.

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Procurei contactar os responsáveis pela abdução da espécie humana, queria entender o propósito por trás da ação cujo resultado colocou-me na estrada para a transcendência. Em contato com descendentes daquela raça fui capaz de compreender as circunstâncias do ocorrido a quase cem mil anos atrás. Só não previ o impacto causado

pela conexão direta com a minha existência superior na consciência do seu povo, transformando-a para sempre. Eles serão profetas e espalharão a palavra sobre a beleza dos universos aberta a eles com esse encontro e eu farei por muito tempo o papel de deus em sua cultura já muito avançada, mas ainda passível desse tipo de erro.

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O sol está entrando em colapso, minha consciência começou o processo de separação das amarras que a ancoram ao binômio tempo-espaço, começo agora a aprender a lidar com o meu novo estado de existência fora da sincronicidade e, por um instante, recordo e me identifico com as palavras de um livro escrito há mais de três bilhões de anos onde lê-se “E não há criatura alguma encoberta diante dele; antes todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele com quem temos de tratar.”. Minha fusão com o fluxo universal é uma questão de momentum, ainda me falta algo.

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Vejo multiversos nascerem e morrerem infinitamente, registrando cada mínimo traço da história do seu percurso pelo tempo. Preciso disso para preencher a última fagulha infinitesimal que ainda me separa da unidade. Tento interferir em alguns deles, mas um ínfimo pensamento meu é mais do que sua frágil estrutura pode suportar. Essa tentativa os destrói. Crio outros, mas as minhas criações não são iguais aos surgidos espontaneamente, elas não se mantêm de forma natural, lhes falta algo. Definham perante a segunda lei da termodinâmica. A fagulha ainda cobra seu preço.

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Sinto todas as coisas, em algum momento indefinido no não-tempo um acontecimento pequeno e irrisório num universo abrigado por um dos infindos multiversos acompanhados por mim me faz ter a compreensão final, preencher o último grão de areia faltante. E, um não-instante antes da fusão definitiva com o conceito inexprimível da completude, olho para um multiverso antigo e um dos seus universos, sem nada de especial, onde um dia uma raça foi retirada por completo de um pequeno planeta azul por outra muito mais avançada, com exceção de um único indivíduo. Então, já não há mais indivíduo, Eu Sou Não Sou.