Ovo de Avestruz
A surpreendi ao celular. Afirmou ser um amiga, mas era mentira. Essa não foi a primeira mentira dela pra mim, e com certeza não seria a última. Também não foi a primeira vez em que decidi não fazer nada a respeito. As pessoas precisam de mentiras, o mundo não sobreviveria nenhum mísero dia baseado exclusivamente na verdade.
Esse é meu dom especial, ou minha maldição pessoal. Desde a mais tenra idade a verdade me persegue, me tocaia, está esperando por mim em todos os olhares, em todas as mexidas de ombro, mãos trêmulas ou micro expressões faciais. Isso tudo se você quiser ser científico. Se não quiser, há outras opções como percepção extra sensorial, telepatia, poderes místicos, vidência. Fica a gosto do freguês. O importante no fim das contas é que sempre sei quando alguém está mentindo pra mim, e pra piorar, na maioria das vezes eu também tenho uma boa ideia de qual é a verdade sendo disfarçada.
Pra ser sincero, eu demorei a assimilar o conceito de mentira, eu não entendia porque as pessoas falavam algo diferente da realidade óbvia, só depois de uma certa idade percebi que essa realidade óbvia só era óbvia para mim. Por causa disso, durante cerca de quatorze anos, provavelmente fui o único ser humano totalmente verdadeiro da história.
Quando finalmente tive o insight, não só passei a usar esse recurso, como me tornei um mestre na prática. Não me valho dele com muita frequência, é verdade, afinal quatorze anos de hábito são difíceis de mudar, mas se eu precisar mentir pra você com certeza será de uma forma magistral e indetectável.
Alias, acabei fazendo disso um trabalho. Tenho uma vida confortável, trabalho pouco e ganho muito bem, meus serviços são disputados a tapa por todo tipo de gente, desde de grandes executivos sedentos por saber se aquela gatinha de vinte cinco anos lhes tem amor verdadeiro, cuja a resposta até hoje foi, invariavelmente, não. Passando por esposas cheias de dúvidas sobre a correção de seus digníssimos maridos, em geral, por bons motivos. Também há investigações policiais de todo tipo e grandes negociações empresariais. Não discrimino trabalho, se você puder pagar meu preço e, devo adiantar, o custo da minha hora tem quatro dígitos, eu vou.
Parece a vida dos sonhos, não? Ganhar muito dinheiro fazendo aquilo se faz melhor? Nem perto disso. Se tem gente alardeando por aí o quanto mentiras magoam é porque nunca foi obrigado a enfrentar a verdade em tempo integral.
Como quando você ama uma garota e ela afirma te amar, mas na verdade está contigo porque você é um cara legal, tem grana e trata ela bem. Diferente do namorado anterior, um calhorda galinha, mas por quem ela ainda é apaixonada mesmo assim. Inclusive, depois do último encontro casual dos dois, sua garota chegou chupando bala de menta e fingindo dor de cabeça porque fez um boquete nele no banheiro da academia e agora não consegue te encarar.
Ou então o fato de não ter amigos de infância, porque todos, ao descobrirem sua capacidade, se afastam uma hora ou outra com qualquer desculpa. Mesmo sabendo que você, pela própria natureza da coisa, conhece o motivo exato deles estarem indo embora. Tive algumas experiências do tipo e manter segredo me pareceu o melhor curso de ação. Confesso, foi fácil, pois quando as pessoas mentiam sobre estarem ok com essa situação, a verdade era sempre “meus deus! eu preferia nunca ter sabido”. A interjeição religiosa variava mas, em essência, era isso.
Tem mais, você deve decidir se ignora ou não as implicações de certos conhecimentos. Deve escolher se vai fazer alguma coisa a respeito da sua vizinha ter ficado com o olho roxo porque bateu sem querer na porta do armário. Sobre aquele cidadão de bem, pilar da comunidade, e sua relação de extremo carinho e zelo com a filha de nove anos da esposa. Ou sobre aquele político importante, ilibadíssimo, que nunca permitiria um centavo de desvio em sua administração, apoia a imprensa livre e só combate adversários no campo das ideias.
Eu fui obrigado a fazer uma escolha, e escolhi cuidar só da minha vida. Provavelmente foi uma escolha covarde, mas sendo eu quem sou eu posso afirmar sem medo: o ser humano é inerentemente covarde. A única diferença no meu caso é o reconhecimento desse estado. A vida me forçou a aprender, não sem sofrer muito no processo, a arte refinada da indiferença.
Conheci Camila num trabalho usual, movido pelo incômodo de um certo empresário a respeito da estreita amizade entre sua jovem esposa e um personal trainer. A princípio nada nela me chamou a atenção, era uma secretaria como outra qualquer. Meu contato com ela foi inevitável no processo de descobrir sobre a agenda da sua chefe, Bianca, a jovem esposa supracitada.
Bianca era arquiteta, e comandava um escritório respeitado. Fingi interesse em contratar seus serviços para ter uma desculpa para visitá-la. Obviamente, sincronizei a minha visita com os horários suspeitos apresentados pelo marido. Na primeira tentativa fui barrado pela secretaria, Bianca estava em reunião, explicou-me oferecendo outra data. Não notei nada estranho.
Escolhi não remarcar, precisava surpreender o alvo. Fiz outras tentativas, mas sempre com resultado parecido. Bianca em reunião, visitando uma obra, no médico, almoçando com um cliente. Talvez lá pra quarta investida, comecei a estranhar o fato de tudo que a secretaria me dizia parecer verdade. Ninguém fala a verdade cem por cento do tempo. Numa das minhas visitas, puxei conversa, precisava força-la mentir sobre qualquer coisa, aquela situação já estava me deixando incomodado.
Nada. Nenhum sinal, nenhuma sensação, nenhuma pista. Cheguei a cogitar a possibilidade estar perdendo o jeito, mas uma simples visita a minha namorada provou o contrário, meu detector estava funcionando a contento. O caso se arrastava e o cliente já começava a cobrar resultados pois, em geral, meu diagnóstico era imediato. Resolvi apelar para os métodos tradicionais e contratei, eu mesmo, um detetive para seguir Bianca.
O resultado, óbvio, foi a comprovação do caso. Mas isso pra mim já não importava. Aproveitei um momento no qual o detetive me garantiu que os amantes estavam juntos e corri para o escritório. “Foi ao dentista”, Camila me respondeu sem pensar muito. Minha cabeça explodiu em pensamentos, a secretária até podia não saber do caso, lógico, mas sendo ela a pessoa no controle da agenda de Bianca isso era muito improvável.
Passei a notícia para o marido traído e fiquei acompanhando a situação a distância. Bianca demitiu a moça, isso insinuou desconfiança. Provavelmente ela via a secretaria como a fonte do vazamento, a responsável pelo caso ter sido descoberto. Camila sabia, e havia mentido em todas as conversas comigo, mas eu não conseguia perceber. Minha primeira reação foi de orgulho ferido, fiquei indignado com a ideia de alguém poder me vencer no meu próprio jogo. Depois uma onda de curiosidade, e até de excitação tomou conta.
Camila virou o centro da minha obsessão. Descobri todo o possível de se saber dela pelas redes sociais, investiguei seu passado, mas nada sugeria a possibilidade dela ser a mentirosa mais habilidosa do mundo. A vida dela parecia ser deveras comum. Decidi chegar mais perto pra tentar entender a situação e acabei nós arrumando um “encontro casual” numa livraria. Flertei com ela, convidei-a pra sair e ela aceitou.
Fomos a um barzinho numa parte chique da cidade, eu não estava preparado para o que aconteceria naquela mesa a meia luz. Conversamos, como talvez eu nunca tenha conversado com ninguém na minha vida. Tateando o desconhecido, sem ter qualquer certeza de quão precisas eram as afirmações feitas por ela. Diferente de todos os meus encontros anteriores, era impossível saber se ela realmente estava interessada. Senti medo e excitação.
Terminei com a minha namorada naquela mesma noite. Passei e viver com Camila todas as fases normais do início de um relacionamento, com as dúvidas, surpresas, mistérios e tensões tão características delas. Pela primeira vez na minha vida tive a oportunidade de exercer confiança em alguém, de ver a máscara criada por todos para agradar a quem se está interessado. Foram tempos de magia e encantamento.
Depois de um ano e meio de namoro, conheci os pais dela e confirmei a natureza não hereditária da peculiaridade que a tornava insondável para mim, casamos. Já são quatro anos vivendo em uma propaganda de margarina. Claro, para as bitucas de cigarro no cinzeiro de casa, apesar de nenhum de nós fumar, para os locais com nomes curiosos nos quais gasta tanto com o cartão de crédito, para o porquê de se arrumar tanto para ir a yoga e muitos outros pequenos motivos de desconfiança, Camila sempre me deu explicações perfeitamente plausíveis.