Oficialmente, era um tamanduá. O DNA não batia, as proporções estavam todas erradas e a coisa não tinha sequer pelagem, mas alguém carimbou e encerraram o caso. Ninguém se importava, essa era a verdade. A vítima estava morta, o bicho também, não havia porque investigar mais. No fim do dia, foi todo mundo pra casa tomar uma gelada. Poderia ter terminado assim pra mim, infelizmente havia uma diferença entre eles e eu: eu ouvi as palavras.

O CIOPS recebeu a ligação por volta das vinte e três horas. Parecia trote, mas a voz do outro lado do telefone tinha um sobrenome de peso e estava ligando de um dos endereços mais caros da cidade. Trote ou não, o coronel mandou atender. Minha viatura estava próxima resolvendo uma reclamação de barulho.

O Andrade tinha fodido as costas e estava de licença. Então fiquei apenas eu e o novato rodando. Sabendo disso, a central foi passando as bobagens: som alto, briga de casal, coisa inofensiva e fácil de resolver, pra não correr o risco de complicar com um homem a menos e um sem experiência na função.

Dei uma prensa num playboyzinho com o som estourando num posto de gasolina e saímos pra verificar a chamada. A denúncia tinha sido feita por uma vizinha, a mulher afirmou ter ouvido gritos e outros barulhos suspeitos na casa ao lado. Um detalhe interessante: ela também disse ter visto um animal atacando alguém.

A instrução era pra verificar. Se houvesse mesmo algum animal perigoso, chamávamos os bombeiros. Demoramos um pouco, pois o lugar — um condomínio fechado para podres de ricos — ficava bem fora de mão. Além disso, mesmo estando na frente do portão, foi um custo pro porteiro deixar a gente entrar. Precisou de autorização de Deusdeus e o mundo.

Quando conseguimos chegar ao local exato dos acontecimentos — Uma mansãozona de novela — Estava tudo escuro e silencioso. Apesar de não parecer nada de mais, eu senti aquele arrepio na nuca de quando algum anjo sussurra no seu ouvido “vai dar merda”. Mandei o novato ficar no carro e bati na porta da frente. Nada, nem vento, nem uma folha se mexendo.

Tentei a porta, estava destrancada. Chamei o novato.

— Presta atenção, vamos entrar e eu vou na frente. Pelo amor de Ddeus, segura tua franga aí, eu não quero levar um tiro pelas costas. Melhor ainda, deixa essa arma travada, se acontecer alguma coisa com esse bando de barão, a gente tá fudido na mão do coronel, entendeu?

O garoto era meio lerdo, mas acenou com a cabeça confirmando. O primeiro andar estava limpo, limpo mesmo, impecável, dava pra comer no chão. Fiz sinal pra ele me acompanhar e fomos subindo a escada. Segundo andar. Algo não cheirava bem, e quando digo isso, quero dizer que algo fedia mesmo, só não sabíamos exatamente de onde vinha.

Dei mais uns passos. Uma mesinha, numa da sala de estar com uma tv do tamanho do meu corsa, estava toda bagunçada, copo no chão, estilhaços de vidro, mancha vermelha no tapete, mas não tinha como saber se era sangue. Quando me aproximei pra olhar melhor, escutei um gemido vindo da escada. Eu e o novato nos entreolhamos, pela cara, ele tinha ouvido também.

Fiz sinal pra ele destravar a arma e avancei pelos degraus rumo ao terceiro andar. A sensação de “vai dar merda” se intensificou, juntou com fedor — cobri o nariz com a camisa pra não vomitar. Aqui os sinais de luta eram óbvios: quadros tortos na parede, outros no chão, vasos quebrados, móveis fora do lugar. O barulho vinha de uma porta dupla do fim do corredor, provavelmente a suíte “master”.

Em outra situação talvez eu tivesse me anunciado como polícia, batido antes. Mas após colar o ouvido na porta, o som vindo lá de dentro me pôs no automático. Arregacei tudo com um chute e entrei gritando “polícia, mão na cabeça”. Estava escuro, não sei se o novato viu alguma coisa ou só me seguiu quando comecei a atirar naquilo.

Como num reflexo, após o primeiro disparo, a coisa jogou a mulher com uma força inacreditável. O corpo dela voou, despedaçando uma das janelas. Pude ouvir com clareza o baque seco de algo acertando a calçada lá embaixo.

O bicho tentou correr, mas uma nova saraivada de balas não deixou ele se mover nem dois passos. Caiu soltando um grunhido agudo de estourar os ouvidos. Ainda se movia, mas estava agonizando.

— Novato, desce lá e vê se a vítima ainda tá viva. Tá controlado aqui — Ele obedeceu.

Me aproximei com a arma apontada, a coisa estava de bruços numa poça de sangue escuro, virei com o pé. Tinha pouco mais de um metro, os membros finos terminavam em dedos ossudos com garras. A pele era lisa, esbranquiçada e semitransparente. A cabeça sem orelhas. Do rasgo da boca saia um tubo longo, eu sabia onde tinha sido enfiado, o fedor era de fezes. Segurei o vômito de novo.

Lá embaixo, o novato tentava cobrir a vítima, despida da parte de baixo, com um saco de lixo. Assustou-se com o som de mais um disparo, já se preparava pra entrar novamente quando me viu saindo cabisbaixo. Chamei os bombeiros e o rabecão.

No laudo da mulher, o pessoal da perícia colocou “traumatismo craniano” como causa. Pra que complicar? Explicar o motivo real daria muito trabalho e não mudaria nada. Ninguém reparou nem na coincidência de um corpo dando entrada no IML no dia seguinte, vindo exatamente do mesmo condomínio, sem causa da morte definida. Nem mesmo o fato da cavidade torácica não apresentar vestígio dos órgãos internos chamou a atenção.

Acabei me aposentando mais cedo, comprei um sítio e fui morar no interior. Ajudou, não havia um vizinho em quilômetros. Depois daquela noite, qualquer grupo de quatro ou cinco pessoas já fazia martelar na minha cabeça as palavras. Palavras ditas por uma coisa inumana antes de levar o tiro de misericórdia: “Os outros vão me vingar”.