A Loja
Parecia um dilúvio, mas talvez fosse questão de perspectiva. Já era raro a cidade ver chuva, ainda mais tanta água assim em novembro. Longe do carro, Alberto e Amélia corriam como ratos em busca de abrigo, uma marquise que fosse. A esperança de encontrar algum lugar funcionando no feriado já chegava ao fim quando viram um neon de “aberto” exibindo seu exuberante azul em meio aos pingos. Entraram.
Depois de desembaçar os óculos, enquanto a esposa secava o rosto em uma das mangas da blusa, Alberto pôde, enfim, dar uma boa olhada no lugar. Era uma loja pequena, toda em branco. Separado deles por um balcão com um computador em cima estava uma quantidade indistinguível de estantes, onde se empilhavam caixas e caixas de tamanhos e formatos diferentes, todas, também, perfeitamente brancas. O atendente chegou um instante depois.
— Vocês não deveriam estar aqui — disse o jovem alto e magro, todo de branco.
— O quê? — disse Alberto, dando um passo em direção ao balcão.
— Vocês — o atendente apontou para os dois — Não deveriam estar aqui.
— Olá, me desculpe — disse Amélia, tomando a frente com o largo sorriso que usava para negociar. — É que está caindo um toró lá fora, e nós só queríamos um lugar pra esperar a chuva diminuir um pouco. Se for preciso, podemos comprar alguma coisa. Né amor?
— É, podemos — Alberto continuava sem entender o lugar. — O que é que vocês vendem mesmo?
— Senhor, eu não quero ser rude, mas não acho que vocês possam pagar por qualquer dos nossos produtos. Nossa clientela é muito, muito exclusiva, e seria um problema caso um deles aparecesse e visse vocês aqui. Sinto muito mesmo, mas vou ter que pedir que saiam.
— Olha aqui seu moleque…
O sangue subiu à cabeça. Alberto já partia pra cima do atendente quando foi impedido pela esposa. Amélia conhecia o gênio do marido, estava acostumada a ter de controlá-lo. Segurou Alberto pelo braço.
— Calma, amor. Tenho certeza que ele não quis ofender. Acho que assim, completamente molhados e nessas roupas de trabalho, não devemos parecer VIPs mesmo — Amélia apontou para o computador — Você tem um sistema aí? Tenho certeza que se procurar por Alberto e Amélia Almeida Prado vai descobrir que somos ótimos clientes. Mas então, vocês trabalham com o quê? Joias? Ouro? Itens de luxo?
— Senhora — O atendente suspirou e começou a digitar. Estava claro que o casal não pretendia sair — Nós vendemos itens exclusivos, impossíveis de se obter em outro lugar. Infelizmente, o custo dessa exclusividade costuma ser impeditivo para a maioria.
— Entendo. Mas o quê, exatamente, vocês vendem? Essa caixinha aí, por exemplo, é o que? disse Amélia, apontando para um volume menor numa das estantes mais próximas do balcão. Como todos os outros, era uma caixa completamente branca sem nenhuma marcação ou referência.
— A senhora tem um bom olho. Esse é um dos nossos itens mais procurados: uma caixa de amor. — O atendente sorriu. Algo na tela parecia tê-lo animado — Mas não qualquer amor, é uma caixinha de amor próprio. A senhora pode ver bem pelo tamanho, já que uma quantidade muito grande pode causar mais mal do que bem.
Amélia sorriu amarelo. O marido, que observava o lado de fora na esperança do tempo arrefecer, virou-se num susto.
— Você está dizendo que tem um sentimento dentro dessa caixa? — Alberto aproximou-se do balcão com uma gargalhada. — Isso é ridículo!
— Meu bem, talvez seja um jeito moderno de dizer que eles trabalham com medicamentos psiquiátricos.
— Não, senhora. Seu marido está correto. Nossos produtos são essências destiladas de conceitos subjetivos e sentimentos. Pelas regras da casa, eu não poderia estar falando disso com qualquer pessoa fora da nossa lista de clientes, mas, devido às circunstâncias — o jovem apontou a tela — talvez seja possível abrir uma exceção. Vocês teriam interesse em alguma coisa?
— Vamos embora, Amélia. Esse rapaz está fazendo chacota conosco.
— Calma, amor, que agora eu fiquei curiosa. Talvez seja um daqueles círculos esotéricos, sabe? Meu jovem, eu acho que tenho amor próprio suficiente, como você pode ver. Não teria aí alguma coisa com um uso mais… prático? Não sei, algo que pudesse trazer algum retorno mais tangível?
— Acho que sei do que a senhora precisa — O rapaz pegou três caixas de tamanhos diferentes, colocando-as sobre o balcão — Aqui nós temos outro item de muita saída: Sucesso. Como a senhora pode ver, é vendido em três tamanhos: local, regional e global.
— Mas que besteira! Amélia, a chuva diminuiu, vamos embora.
— Já já amor, espera um minutinho. — Amelia tocou a caixa maior — Certo, vamos supor que eu fosse levar essa daqui, o que me custaria?
— Vamos ver… — O rapaz voltou-se para a tela do computador — Estou vendo aqui que a senhora já tem sucesso a nível local, então seria um upgrade. Nesse caso, a loja ficaria com o que sobrou da sua empatia, e também seria necessário que abrisse mão do respeito pela vida humana.
— Amélia, isso está começando a me assustar, vamos embora — Alberto puxou delicadamente a esposa pelo braço.
— Me solta! — Ela se desvencilhou com um movimento brusco e se virou para o atendente — Eu vou querer.
— Ótimo. Os primeiros efeitos do produto serão sentidos em até setenta e duas horas depois da compra, com o efeito total sendo alcançado em um prazo de doze a vinte e quatro meses. Tenho certeza que a senhora vai ficar totalmente satisfeita.
O rapaz mexeu no computador, e um barulho de trancas girando foi ouvido enquanto a vitrine era coberta por um portão de metal pelo lado de fora. Alberto correu para a porta, mas a maçaneta não se movia. Sob os protestos assustados do marido, o atendente empurrou a caixa branca e comprida para as mãos de Amélia, que a abriu, trêmula. Dentro, jazia uma longa faca de cabo madrepérola.
— Pronto senhora. Agora é só realizar o pagamento.