Baccarat
“É um baccarat” Ele disse com os olhos brilhando e um sorriso bobo. Começou a tagarelar sobre a história da peça, de como foi um dos primeiros do tipo e pertenceu a Napoleão III. Afirmou não ter ideia de como aquilo tinha ido parar numa coleção particular, e mais um monte de coisa enquanto saltitava pela sala como uma criança.
E o salário, meu deus, o salário! Era uma fortuna! Daria pra gente financiar um apartamento. Eu até estranhei aquele dinheiro todo para trabalhar só vinte horas por semana, mas ele argumentou sobre o francês ser um bilionário, de como rasgava dinheiro. O pagamento, perto do valor da peça restaurada no mercado, era troco. “Agora nossa vida vai engrenar”, disse.
No início foi isso mesmo, a gente passava mais tempo junto e nos dávamos a pequenos luxos aos quais, agora, podíamos pagar. Foi maravilhoso, mas não durou muito. Após uns três ou quatro meses, alguns problemas mais graves começaram a despontar. Digo mais graves, porque um monte de pequenas coisas já tinha acontecido, mas vistas isoladamente eram todas perfeitamente explicáveis. André foi avisado, antes de assinar o contrato, a respeito das altas concentrações de chumbo da peça, e da possibilidade disso gerar alguns pequenos incômodos. Nada sério, um enjoo aqui, uma mudança de humor ali, e encaramos assim.
Mas, os meses foram passando, e as mudanças começaram a ficar mais profundas. As poucas horas de expediente se alongavam mais a cada dia e, mesmo em casa, ele estava sempre envolto em pesquisas de material e consultas a especialistas. O pequeno escritório mantido no apartamento foi sendo lentamente inundado por fotos, relatórios, mapas, tudo relacionado ao lustre. O dinheiro começou a perder a graça, já não fazíamos nada com ele.
O assunto de todas as refeições eram sempre a combinação certa de niquelado da tinta, ou como nenhuma das misturas e preparados conseguia polir satisfatoriamente e os cristais rosados. Quando precisei fazer um exame médico e pedi a ele para me acompanhar, as desculpas logo se acumularam. Acabei ligando para minha mãe, ela concordou em ir comigo. Quando me despedi dela e desliguei o telefone, chorei. Nem sei se ele notou, dormiu na cadeira do escritório babando em cima das fotos do seu precioso baccarat. Nesse mesmo dia decidi ir ao estúdio de restauração, fosse como fosse, precisava pelo menos entender a situação.
Numa manhã, aproveitando a ida do André ao centro para encontrar-se com um fornecedor, me dirigi ao estúdio. A mansão onde ficava parecia uma casa de cinema, com aqueles portões enormes com monogramas dourados na frente. Não foi difícil entrar, menti pro segurança dizendo ter ido a pedido do André. Passando o portão, fui recebida por uma moça loira vestindo um blazer marfim e, depois de algum tempo lutando com o português sofrível dela, entendi ser uma espécie de governanta da mansão. Por algum motivo, André a citava como se fosse um homem.
Marie, era esse o nome da governanta, se ofereceu para ficar com a pasta que eu trouxera, e entregar ao André quando ele chegasse. Não sabia bem como responder, queria entrar no estúdio, puxei conversa perguntando da peça, disse só ter visto as fotos, e era verdade, e comentei sobre a dedicação do meu marido a esse trabalho. Ela sorriu, acabou perguntando se eu não queria entrar para ver pessoalmente. Eu aproveitei a chance.
O estúdio ficava numa antiga estufa adaptada, os vidros estavam cobertos com algum material e havia um sistema de ar-condicionado. A porta tinha uma daquelas fechaduras eletrônicas de combinação. Entramos. O lugar permanecia a meia luz e fazia frio, ela falou um pouco sobre o estúdio, do porquê da temperatura, e sobre como os níveis de umidade eram controlados. Também comentou algumas peças pelas quais passamos antes de chegarmos ao nosso destino.
Marie acendeu as luzes. O baccarat era um lustre gigantesco, com quatro estruturas circulares ao redor de uma quinta, todas feitas em ouro, cada uma com oito braços com detalhes em prata terminando nos apoios para velas. Todas as estruturas circulares eram encabeçadas por um domo de cristal e alguns milhares de pendentes de pedraria rosada. Provavelmente uns duzentos quilos de metais preciosos e cristais finíssimos.
Era uma visão impressionante, enquanto Marie continuava a comentar detalhes da história da peça, instintivamente me aproximei e levei a mão a um dos cristais. Tocá-lo era uma sensação estranha. Senti um beliscão, puxei a mão, e um pequeno fio de sangue caiu sobre o piso, algumas gotas respingaram nas pedrarias. Marie perguntou se eu estava bem. Respondi afirmativamente, tinha sido só um arranhão, apesar de eu não ter ideia como havia me cortado. Ela sorriu enquanto colocava um lenço sobre meu dedo, e me disse que André ficaria zangado, o sangue é ácido e poderia danificar a peça. Agradeci e, depois de lavar o dedo e fazer um curativo, me despedi e fui pra casa. O corte não parava de sangrar.
Horas depois André Chegou possesso, gritando e perguntando o motivo da minha ida até lá. Tentei engendrar alguma resposta mas, claramente, ele não queria ouvir. Me chamou de infantil, me acusou de ter possivelmente estragado o trabalho dele e reforçou o quanto tinha sido ridículo inventar uma mentira pra ir lá. Se eu queria ir era só pedir, ele teria me levado, continuou. Tentei conversar, mas ele estava fora de si. No fim, pegou uma mochila com umas roupas e foi dormir no estúdio.
Não vi o André por três dias. Lembrei-me da Marie, de como era bonita com seus olhos verdes e curvas esguias, e comecei a me questionar se ela não era o motivo disso tudo. Se a maneira como André falava dela, como se fosse um homem, não seria uma tentativa de esconder algum envolvimento dos dois. Minhas conjecturas foram interrompidas por uma ligação de André. Sua voz estava calma, começou desculpando-se por tudo, queria me encontrar para conversarmos, tentar resolver tudo. Disse que me amava e me pediu para ir ao estúdio no fim do dia. Aceitei.
Chegando à mansão, o segurança me deixou entrar e perguntou se eu sabia o caminho. Respondi que sim, segui o mesmo caminho por onde Marie havia me levado antes, ela não apareceu pra me receber. Bati na porta de vidro, em um instante André a abriu com um sorriso, me convidou pra entrar.
Já na sala do baccarat, me convidou a sentar numa belíssima cadeira barroca dourada, com certeza umas das peças sob seus cuidados. Me prometeu explicar tudo, mas, antes, disse ter uma surpresa para mim, e me pediu para fechar os olhos. Me arrumei na cadeira e obedeci. Falava atrás de mim enquanto pegava algo.
Pediu perdão novamente, comentou sobre ser o culpado pelos últimos meses terem sido tão conturbados, sobre stress por causa desse projeto, e pelo fato das coisas não terem saído como planejado, mas iria arrumar tudo, garantiu. Escutei sua aproximação, colocou suas mãos nos meus ombros e disse que agora eu estava ali, e tudo ia dar certo.
Sorri. Ia me virar quando escutei um clique, e alguma coisa na cadeira machucou meus pulsos. Abri os olhos assustada, minhas mãos estavam presas aos braços da cadeira. Tentei me soltar, gritava perguntando o que era aquilo, o que ele estava fazendo. André deu a volta e me olhou nos olhos. Tinha um balde de metal na mão e uns cateteres. Falava calmamente enquanto prendia uma borracha no meu braço.
Estava a meses tentando encontrar uma fórmula para polir os cristais rosas do lustre sem estragá-los, disse, mas nenhuma combinação dava resultado. Já estava prestes a desistir quando chegou naquela tarde e foi informado por Etiene sobre eu ter estado lá. Só ao retornar ao estúdio, quando limpou os resquícios de sangue nos cristais, percebeu como estavam magníficos por baixo, brilhando como nunca e sem nenhuma corrosão.
“E a questão não era sangue minha querida” disse ele enquanto introduzia o cateter no meu braço causando uma dor aguda. “Eu sei disso porque eu tentei com o meu. A questão não era sangue, era o seu sangue. Algo muito específico na química do seu sangue interage com a estrutura dos cristais, limpa, revive”. Antes de perder os sentidos, ainda pude ouvir a trava eletrônica da porta abrindo, depois uma voz feminina. “Il será parfait, André”.