Amor e Piçarra
A primeira vez em que a viu, ela caminhava para ser de outro. Marchava resignada em direção à capela para desposar um homem escolhido pelo pai. Os olhos castanhos dela lhe divisaram o torso nu, cruzando com os seus de soslaio. Acácio parou com a pá. Lhe desgostava a ideia da poeira maculando o branco do vestido da moça. Esperou o cortejo ganhar alguma distância para continuar jogando a piçarra da carroça para estrada.
Na segunda vez em que a viu, pareceu sina confirmada. Correu na direção do barranco escutando o barulho da briga. Deu de cara com dois homens, um engalfinhando com Francisca, rolando no chão. Com o gosto do ódio na boca, já puxava a peixeira quando a moça empurrou o corpanzil inerte para o lado, revelando o punhal e o vestido cobertos de sangue. Acácio atacou o outro pelas costas e, enquanto o corpo caía no chão, seus olhos não saiam dos de Francisca.
— Você tá…
— Só suja e cansada — Ela respondeu, com um sorriso nos lábios.
— E cadê teu marido?
— Rubão correu. Foram outros três atrás dele, querendo o apurado do mês. Ele já deve estar no sítio vizinho, se armando pra voltar.
Acácio ofereceu a mão para ajudá-la a levantar. Olharam no fundo dos olhos um do outro, e naquele momento surgiu um abalo na terra seca que era o coração do rapaz. Que mulher era aquela? Se fosse outra estaria chorando, o corpo coberto de terra e sangue, a morte bem ali a quatro passos. Mas nela havia era um riso, com aqueles dentes brancos, e uma luz nos olhos de encandear o mundo.
— Tô vendo que hoje tu tá de pano passado. Pena que manchou a camisa. Mas tua mulher deve é ter orgulho de lavar sangue da roupa de um homem corajoso feito tu.
— Eu não tenho mulher não. — Ele respondeu, ainda com o pensamento no fato dela lembrar da primeira vista dos dois.
A fala de Acácio se deu no instante em que ouviu o barulho na mata. Vinham saindo Rubão e mais quatro. A conversa foi breve, lhe elogiaram a valentia de ter matado os dois cabras e salvado a moça. Ele tentou corrigir a história mas parou quando ela deu confirmação de tudo, louvando a Deus por ter posto o rapaz ali para lhe evitar a morte.
Dali em diante não pôde mais esquecê-la. Passava os dias na labuta lembrando daqueles olhos. Pela noite custava a dormir, e quando conseguia eles lhe apareciam em sonho. Não entendia a natureza daquilo, vivia como doente, numa sede constante que nenhuma água afastava, uma necessidade a que nada dava vencimento.
Um dia, foi conversar com o pai. Contou-lhe a história e o sentimento. O velho riu banguela e explicou ao filho que aquilo era amor. Acácio ficou contrariado, entendia o gostar da mãe, dos irmãos, ou as coisas de marido e mulher, coisas de alcova. Mas aquele sentimento não era nenhum desses. O pai, com paciência, lhe explicou os tipos de amor, e em seguida aconselhou ao rapaz distância, lhe prometeu que o tempo cuidaria de ir esfriando aquele fogo até virar brasa, e depois cinza. Chamego por mulher casada só deságua em tristeza ou desgraça, avisou.
Acácio pelejou consigo mesmo para o seguir o conselho, mas foi em vão. Convidado por Rubão para um rega-bofe em agradecimento a ajuda, adiou até o coração não permitir mais. Por fim, decidiu que o melhor era ver Francisca, lhe olhar nos olhos e encontrar neles o desinteresse e, com esse, a força para acabar de vez com aquela ilusão.
Ao aproximar-se da casa, as pernas bambeavam e o peito palpitava acelerado. Foi recebido pelo homem no alpendre.
— Oh rapaz, é um gosto lhe ter de visita — Rubão o abraçou e lhe indicou uma cadeira — Se achegue, vamo tomar uma pinga e ter uma prosa enquanto o almoço não sai.
A conversa não interessava, foi ali respondendo com uma ou outra palavra qualquer sem prestar muita atenção. Todos os nervos do corpo concentrados na porta, até Francisca passar por ela.
— O Almoço tá pronto — Falou dirigindo-se ao marido sem mudar a feição, mas no cruzar de olhos com Acácio soterrou todo e qualquer resquício de autocontrole do rapaz com um sorriso incontido — Andem, venham comer enquanto tá quente.
Rubão, à cabeceira da mesa, falava pelos cotovelos. Contava história e vantagem enquanto Acácio balançava a cabeça em concordância, fazendo um enorme esforço para manter os olhos longe da mulher sentada à sua frente. Ela, vista baixa, vez por outra sorrindo com o canto da boca, também fingia prestar atenção ao que o homem dizia.
Terminada a refeição, Francisca levantou-se e começou a tirar a mesa. O marido, ainda entretido no monólogo disfarçado de conversa, não percebeu o leve roçar da mão da esposa na do convidado. Poderia ser um esbarrar, um simples acidente, mas Acácio teve a certeza do oposto quando ela não recuou, ao contrário, alongou aquele instante, pele contra pele. A necessidade de conversarem a sós, longe do marido, urgiu nele como nunca.
A oportunidade só surgiria meses depois, nas festas de São Francisco. No meio tempo, Acácio arrumava qualquer motivo para passar pelo sítio, formou até amizade com Rubão, a quem suportava com um tédio penitente na esperança de trocar qualquer palavra que fosse com Francisca.
Chegando o dia santo, o povo se reunia na frente da igreja para as quermesses. Ali, no meio das barracas, do barulho da música e dos fogos, se podia dizer muita coisa sem chamar atenção. Acácio esperou Rubão se apegar a bebedeira com os amigos, e saiu feito perdigueiro caçando Francisca entre os romeiros. Encontrou-a olhando os bolos do leilão.
— Tu é feliz? — Ele ficou ao lado dela como quem confere, indiferente, os quitutes da banca.
— Sou mulher. Tem coisas que não dependem do meu querer.
— E se dependesse? — Ele deu um passo pro lado encostando o ombro no dela.
Ela não respondeu, apenas cobriu com a mão o sorriso meio triste.
A conversa só serviu para perturbar mais a cabeça do rapaz. E as visitas ao sítio, seu único conforto, de tão frequentes começaram a dar na vista. Um dia, o burburinho das redondezas acabou chegando aos ouvidos de Rubão. Daí o homem foi aparando a amizade aos poucos, deixando de receber Acácio com qualquer desculpa até, por fim, não lhe admitir mais nem no alpendre.
Entrou o ano e a angústia de Acácio só aumentava. Sem Francisca, todo dia era uma luta até para sair da rede. Começou a pesar no coração uma vida de tristeza contra uma de desgraça e, lá pra fevereiro, decidiu que lhe aprazia mais o segunda, já que nem seria a primeira vez. Afiava a peixeira no dia em que Francisca lhe bateu à porta, Rubão estava doente.
O homem caíra de febre já a sete dias, e ela não podia sozinha com a labuta no sítio, tinha vindo comprar-lhe o trabalho. A doença de Rubão era um mistério, chamaram até doutor do Juazeiro, mas nem assim se descobriu a natureza da moléstia. Francisca, esposa abnegada, cuidava do marido enquanto o trabalho do Sitio ficava por conta de Acácio.
E o tempo foi passando. Acácio, de início, fizera moradia num casebre ao lado da casa. Foi aos poucos cuidando do plantio, da colheita, das vendas e do curral. Só lhe foi negado acesso a hortinha, cultivada por Francisca lá nos fundos do terreno. Era um cantinho de sossego só dela, dizia.
Rubão não saiu mais da cama, foi vencendo os anos ali, prostrado, a cabeça piorando devagar. No fim virou quase uma criança. Acácio mudou-se para dentro de casa. A felicidade passou a lhe encher os dias e nem o falatório dos vizinhos o abalava. Nunca mais deixou o sítio, não largou de Francisca e nem Francisca dele. E quando ela apareceu de barriga o povo já tinha deixado para lá, esquecido ou se entretido com alguma outra coisa.