O Ceifeiro
Existem pessoas aparentemente incapazes de entender o quão apertada é minha agenda. Gente que, por sofrer com um ou outro problema na vida, sente-se no direito de bagunçar meu complicado cronograma tentando decidir por si mesma o momento da própria morte. Estão sempre querendo furar a fila. Se eles soubessem o quão complexo é remarcar mortes por causas naturais, acidentes ou homicídios, com certeza não fariam isso.
Suicidas são uns chatos. Eles não sabem como é ser obrigado a sair no meio do almoço porque alguém simplesmente não pode esperar sua hora. Sinceramente, desconheço detalhes do destino que aguarda essas almas após entregá-las ao pós-morte definitivo mas, quando preciso fazer hora extra pra cumprir meu cronograma por causa de algum apressadinho, fico torcendo para haver um inferno pra esses indivíduos sem educação. Ontem foi um desses dias.
Eu deveria estar indo buscar uma senhora no hospital geriátrico. Infelizmente, a coitadinha precisaria passar algum tempo viva de forma biologicamente inexplicável por eu ter me desviado da minha rota pegar um imprevisto. Você já imaginou o quão traumático e confuso seria para a pobre velhinha, quando ela se visse ainda viva depois do próprio coração parar de bater? Teria levado um tempo enorme para explicar o atraso.
Encontrei o meu “imprevisto” num apartamento luxuoso, deitado na banheira com os pulsos abertos. Ele ficou surpreso quando entrei.
— Quem é você? É dos bombeiros?
A pergunta era estapafúrdia. Não havia como minha indumentária ser confundida com a de um bombeiro. Esse não era dos mais espertos.
— Não, eu sou a morte.
Geralmente eu não sou tão curto e grosso assim. Sabe como é, tem sempre o psicológico do defunto, e além disso tenho uma certa reputação e estilo a zelar. Mas eu não estava no auge da minha paciência.
— O que? Não! Isso é piada?
Respirei fundo, o cara ia encrencar. Era o tipo do morto difícil.
— Olha, eu estou sem tempo. Levanta logo daí, eu tenho outra pessoa para atender. Aliás, diferente de você, essa tinha hora marcada.
Falei dando um puxão, lhe arrancando do corpo e pondo ao meu lado. Ele imediatamente percebeu o seu duplo ainda na banheira. Por um momento, a visão o deixou em choque. Isso é normal, assim como a conversa previsível a seguir.
— Não! Espera aí! Eu não posso estar morto!
Ele gritava desesperadamente tentando se desvencilhar de mim. Coisa impossível, sendo uma das minhas prerrogativas o fato de nenhuma alma poder realmente livrar-se do meu toque caso não seja da minha vontade.
— Amigo, deixa de escândalo, você está morto, seu corpo está aí, você já viu. Tenta facilitar um pouco a minha vida. Queria viver? Pensasse nisso antes de bagunçar toda a minha agenda. Agora vamos, eu não tenho tempo a perder.
— Espera! Por favor! Me dá uma chance, eu faço qualquer coisa! O que você quiser!
A situação já estava se alongando além do normal, comecei a ficar realmente irritado com o início das tentativas de suborno, apesar de ser de praxe. Só tinha uma maneira de eu não me atrasar ainda mais.
— Tá bom, tudo bem, vou te dar uma chance… ah… — Dei uma olhada na minha listinha, o nome do rapaz era Marcos — Marcos, tenho uma velhinha pra atender agora, se você me ajudar a chegar lá antes das 10:37 eu te deixo viver o resto do tempo que você ainda tinha. E ai? Fechado?
— Sim! Sim! Muito obrigado! Obrigado mesmo! — Nesse ponto ele me abraçou e até tentou me beijar. Foi nojento. — Você não vai se arrepender, eu nunca mais vou fazer nada assim de novo, eu prometo! Eu juro!
— Tá… tá, agora vamos, senão não vai dar tempo.
Depois de devolver a alma dele ao corpo (ele precisava de um corpo para dirigir o carro), acompanhei o rapaz até o estacionamento, onde embarcamos no seu belo carro esporte vermelho. O carro, além de bonito, era rápido, chegamos na frente do hospital geriátrico com uma folga de quinze minutos. Pedi educadamente ao meu acompanhante para apertar o botão do elevador e subimos até o andar de dona Estela. Ela já estava agonizando na cama e pôde me ver quando me aproximei. Percebeu, provavelmente pelas roupas, que eu não era do hospital.
— Quem é você meu jovem? — Perguntou respirando com dificuldade.
— Não se preocupe Estela, sou um mensageiro, vim para levá-la até o Luiz.
Luiz era o marido dela, tínhamos nos encontrados uns sete anos antes. Boa pessoa, não me deu trabalho. Ela sorriu e murmurou um agradecimento a uma divindade. Peguei-a pela mão e fomos até o elevador, deixando para trás o quarto com o seu corpo e os aparelhos fazendo aquele bipe tão característico. Ela olhou pro Marcos apertando os olhos:
— Quem é esse rapaz? É um anjo também? — Perguntou falando melhor e com ar mais calmo.
A velhinha era um amor, não é todo mundo que me chama de anjo sabia? Geralmente eu sou adjetivado com palavras bem menos agradáveis. Respondi sorrindo:
— Não, não é. Não ligue pra ele, é só um ajudante temporário. Ela riu e nós continuamos até a saída do hospital. Deixei dona Estela na porta e pedi um segundo para despachar o suicida.
— E então, posso ir? Perguntou ele meio temerário.
— Sim, pode ir, eu sou uma pessoa de palavra. Pode ir e viva o tempo de vida que lhe resta em paz.
Ele saiu numa alegria quase saltitante, entrou no carro, ligou o som e pegou o celular. Devia ter muita coisa importante pra falar pra muita gente depois dessa oportunidade de reflexão. Voltei à dona Estela e a encaminhei a porta de saída (não a do hospital, a do mundo dos vivos… um dia eu explico isso melhor).
Depois dei a volta no prédio e me dirigi calmamente a uma rua paralela. Sabe como é, meu trabalho nunca acaba nunca. Ao chegar perto do sinal havia um carro esporte vermelho capotado e em chamas. O motorista dirigira falando ao celular e não percebeu um enorme buraco mal sinalizado na pista. Me aproximei do carro e o puxei para fora. Marcos me olhou com uma mistura de raiva, medo e frustração. Devolvi-lhe um olhar sorridente e disse:
— Você já conhece o protocolo, vamos logo, eu estou atrasado.