Espirais
Lembro com clareza da primeira referência que encontrei sobre daiva kuncikā. Foi em um livro esquecido de Howard Carter, escrito no início do século XX. Carter entrou para história da egiptologia com a descoberta do sarcófago de Tutankhamon, mas foi um objeto específico, entre os milhares de itens encontrados na tumba, o alvo do único livro escrito por ele fora da área da egiptologia.
Daiva kuncikā, a “chave divina”. Um punhal inteiramente forjada em metal negro, com um formato pouco usual, era o foco da publicação. Obviamente não egípcia, Carter conseguiu, mais tarde, determinar a peça como muito mais antiga, anterior aos outros itens contidos na tumba. Assim como o fato de sua origem, na verdade, ser indo-europeia. O objeto o intrigou até o dia de sua morte.
Anos depois, descobriu-se o fato do próprio Tutankhamon ter encontrado seu fim por meio de uma lâmina. Obviamente todos os envolvidos na escavação pensaram em comparar o punhal com o ferimento da múmia, mas Carter havia mantido o item consigo e, após sua morte duas décadas antes, a peça havia desaparecido. Nem a viúva nem os filhos sabiam dizer onde fora parar.
O livro ainda rastreava supostas referências arqueológicas ao item. Sob vários nomes diferentes, o punhal era citado na história de pelo menos uma dúzia de monarcas do mundo antigo. As referências iam desde o século XIII antes de cristo, no qual o reinado de Tutankhamon se situava, até quase 8 mil anos antes em Harappa, na índia, passando por Suméria, Babilônia, Assíria e Acádia. Suas teorias eram instigantes, mas como o objeto havia sido perdido, acabaram também caindo no esquecimento.
Eu estava no quarto período de arqueologia e, como qualquer jovem, era tentado por histórias improváveis e mistérios. Acabei transformando o daiva kuncikā em um hobbie. Pesquisar sua origem, sua história, e tentar desvendar seu destino tornou-se fonte de diversão no meu tempo livre.
Comecei, é claro, pelo “A chave Divina”. O livro era curto e lacônico, Carter fazia referências bibliográficas obscuras, e não consegui encontrar pelo menos dois terços das obras citadas por ele. Aquelas as quais consegui achar estava em idiomas como sumério e sânscrito, e isso não facilitava as coisas.
O título me intrigava. Por que ele havia escolhido esse nome para a peça? Era obviamente uma arma e, segundo seu próprio livro, havia suspeita de ter sido usada para matar vários reis através da história. Dar a ela esse nome parecia inadequado. Outro ponto incômodo era algo com tanto valor arqueológico simplesmente evaporou depois da morte do possuidor.
Durante anos segui as migalhas deixadas por Carter. O punhal, aos poucos, deixou de ser uma distração. Tornou-se quase uma obsessão para mim. Por mais contraditório que isso possa parecer, a busca acabou impulsionando minha carreira. Depois de dez anos, eu era bastante conhecido no meio acadêmico como linguista, tudo devido aos idiomas nos quais fui obrigado a me versar para continuar perseguindo a chave divina.
Também investiguei a fundo o próprio Carter. Troquei mensagens com seus descendentes e, através de sua tataraneta, fiquei sabendo de fatos incomuns sobre sua morte. Oficialmente, ele havia morrido em 1939, de um ataque cardíaco e, posteriormente, sido enterrado no Putney Vale Cemetery em Londres. Estranhamente, a maior parte de seus objetos pessoais não havia sido encontrada depois de sua morte. Também havia um relato delirante de um dos seus filhos, que jurava ter visto Carter onze anos após sua morte, em Paris.
Também por sua neta, tive acesso a vários manuscritos, e aos originais de “A Chave Divina”. O texto sem editoração era bem mais pitoresco e havia insinuações sobre um costume pré-védico de suicídio ritual, realizado por reis da antiguidade. Essa nota era estranha à premissa do livro. Entre os papéis encontrava-se a reprodução de um baixo relevo sumério, aparentemente retratando o espírito de um rei deixando o corpo e subindo ao céu após uma versão desse ritual.
Visitei Harappa, o lugar na índia ao qual era atribuída a origem do objeto. Conversando com colegas, tive a oportunidade de examinar tábuas em sânscrito nas quais o ritual descrito por Carter era mencionado. Curiosamente, o ritual se chamava “chave divina”, e algumas das partes do quebra cabeças começaram a se encaixar.
Nenhuma das escavações indianas havia revelado qualquer objeto semelhante ao punhal, mas a viagem foi uma mina de ouro. Entre os arqueólogos havia um senhor polonês, já na casa dos 70. Conversamos sobre o daiva kuncikā, e ele me contou a respeito de um objeto misterioso muito semelhante ao punhal encontrado numa cena de crime em Varsóvia, em 1993. Cujo o destino posterior foi um pequeno museu local.
Saquei minhas economias, liguei para a universidade, inventei uma história sobre um parente doente e peguei o primeiro voo para Polônia. Cheguei numa madrugada de terça-feira, não havia reservado hotel. Simplesmente sentei na frente do museu durante quatro horas até abrir. Fui atendido por uma moça muito simpática. Segundo ela me informou, o objeto do meu interesse não estava em exposição, mas me permitiria examiná-lo. Infelizmente, isso exigia hora marcada.
Encontrei um hotel barato, dormi algumas horas, e passei o resto da noite estudando as imagens das placas, tanto a suméria quanto a indiana, e suas passagens sobre o ritual. Era inacreditável duas culturas tão distantes, em dois idiomas tão distintos, falando sobre a mesma coisa. Não é incomum, na arqueologia, se encontrar itens cuja natureza desafia a classificação e até a lógica mas, como regra não escrita, quando algo é muito estranho a academia tende a ignorar, empacotar em algum setor de “não classificado” e esquecer o assunto.
Voltei no dia seguinte. Estava tenso, minhas mãos suavam. Adentrei a sala dos fundos do museu junto à atendente. Depois de minutos que pareceram uma vida, a moça trouxe uma caixa. Era uma caixa de metal simples, indiferente ao tesouro contido nela. Pus minhas luvas e abri com cuidado. Dentro, envolto em um tecido escuro, estava o objeto responsável por me roubar noites de sono por quase vinte anos.
Tocá-lo foi estranho, era leve demais. Depois de tantos anos estudando, ensaiando, eu sabia exatamente o que fazer. Foi quase natural segurá-lo com uma das mãos, apertar o pequeno pomo convexo com o polegar, e com a outra girar e empurrar a lâmina para dentro. A engrenagem estava dura depois de tanto tempo. Acabei me cortando, mas consegui.
Ergui a mão lentamente e encostei a ponta do punhal abaixo da minha orelha direita. O objeto zumbia. Era um som baixo, quase imperceptível, assim como a luz azul fraca emitida por ele. Apertei o pomo. A lâmina saiu e penetrou 5 centímetros no meu crânio. permaneci na cadeira enquanto via meu corpo despencar, batendo no chão com um som surdo.
Olhei para minhas mãos. Considerei a possibilidade pouco científica de ser um fantasma, já que podia ver meu corpo no carpete ao meu lado, apesar de eu ainda ter o punhal nas mãos. Tentei pegar outro objeto sobre a mesa. Um pincel. O segurei normalmente. Não, eu era sólido. Chutei de leve o corpo no chão, ele também era sólido. Não achei interessante estar ali quando a atendente voltasse, seria algo difícil de explicar.
Consegui escapar por uma janela lateral aberta para o beco ao lado do museu. Havia algo diferente, eu podia sentir. As cores, os cheiros, os sons, tudo era mais intenso. Tinha sido tão fácil saltar pela janela do segundo andar, eu nem pensei sobre o perigo da queda. Cai de pé, sem qualquer dificuldade. Comecei a andar em direção a rua por simples inércia quando ouvi uma voz atrás de mim: “Não tinha certeza se alguém entenderia as pistas”.
Me virei. Um homem de mais ou menos cinquenta anos, cabelos castanhos, usando um sobretudo, um chapéu de coco e um vasto bigode tipicamente inglês me encarava no beco. Era Carter.