Os irmãos tiveram de atravessar a cidade inteira para chegar no local da demanda. Busão lotado, foi o que deu pra fazer. De tão baixa que era a recompensa, se fossem pagar um uber ficariam no prejuízo.

— Cleiton, vai se adiantando aí que a gente desce na próxima.

— Cara, acho que não vai dar não. Tô mal conseguindo respirar aqui e tu quer que eu me mexa?

— Bora, Cleiton, deixa de graça! Senão, tu sabe como tá lá em casa, tem nem pra janta hoje.

— Tá certo — Cleiton suspirou. — Senhora, leva mal não, mas vou ter que dar uma forçadinha aqui pra passar. Com todo respeito aí, beleza?

A mulher olhou para Cleiton com cara de poucos amigos, expressão que ele viu em todo mundo que foi apertado, empurrado e parcialmente esmagado para que ele o irmão pudesse abrir caminho até a porta. Após o desembarque, os dois checaram os celulares. A precisão do GPS era baixa, então só dava pra saber que a criatura estava num raio de cem metros. O jeito era procurar.

— Cleberson, acho que dá pra gente se separar.

— Não, vamos junto mesmo, ela não é muito perigosa mas é ligeira, vai ser ruim pegar sozinho. Vamos pelo beco, tô vendo uns latão de lixo ali, pode estar por lá.

Os dois sacaram as armas de choque e colocaram o protetor genital. O pior ataque das pernas cabeludas era o chute no saco, capaz até de esterilizar o alvo. Foram entrando no beco, roçando pelas paredes no estilo detetive de série policial ruim.

— Saudade de quando essas porcarias só existiam em Pernambuco. De uns tempos pra cá empesteou.

— Cala a boca, Cleiton! O bicho vai ouvir.

Um barulho surgiu por trás de uma das caçambas de lixo. Cleberson fez sinal de silêncio pro irmão, depois apontou e começou a contar até três com os dedos. No fim da contagem, os dois pularam para o lado, preparados para tontear a criatura. Mas a cena não era o que eles esperavam.

Os irmãos abaixaram as armas e se aproximaram devagar, os dois com cara de espanto. Uns três metros à frente, a silhueta de uma perna deitada no beco mal iluminado tinha algo de suspeito. Pernas cabeludas estão sempre em pé, se deitam é porque morreram ou estão desacordadas.

— Será que ela tá dormindo? — Cleiton sussurrou.

— Perna cabeluda não dorme, estrupício. — Cleberson se aproximou mais — Cleiton, vem aqui, olha isso.

Dando mais dois passos à frente, Cleiton pôde ver a criatura com mais detalhes. Imóvel, as unhas aparadas e a pele lisa, quase brilhante, sem absolutamente nenhum pelo à vista.

— Crê em Deus pai — Cleiton se benzeu.

Ensacaram o bicho mesmo assim. Eles sabiam que ia dar treta na hora de receber, mas melhor a confusão do que perder a viagem. Cleberson marcou a demanda como executada no Otin. Depois de cinco minutos apareceu um motoqueiro para fazer a coleta.

Os irmãos já estavam quase em casa quando veio a notificação no aplicativo, avisando que o pagamento estava sob análise e que o proprietário da conta deveria comparecer à central local do Otin para resolver “pendências”.

No dia seguinte, na Superintendência de Controle e Catalogação de Entidades Supranormais — ou Succes pros íntimos — a fila dava volta no quarteirão. O lugar era como qualquer outro órgão do governo: Sucateado, com pouco pessoal e lidando sempre com muito mais do que seria possível. Quem não chegasse de madrugada ficava entre perder o dia esperando, com o risco de nem ser atendido, ou comprar um lugar mais a frente na fila dos cambistas especializados que batiam ponto no local.

Cleberson e Cleiton não tinham grana para comprar um lugar, nem podiam perder o dia de trabalho, então a solução foi Cleiton dormir na fila. E, por dormir, entenda passar a noite, uma vez que dormir propriamente seria desaconselhado já que os cambistas eram muito competitivos e agressões e ameaças eram comuns.

Já diante do balcão, depois de explicar a situação para um atendente pouco atencioso, os dois foram levados à sala da supervisão, onde Gerson, o supervisor, como denunciava seu crachá, esperava para resolver a questão.

— Fala, doutor, tudo em cima? — Cleiton entrou animado. Recebeu de volta um olhar de entojo e burocracia.

— Sentem aí — Gerson começou a digitar qualquer coisa no computador — Estou vendo aqui que o senhor Cleberson de Oliveira Lima e sócio estão solicitando pagamento pela captura de uma Pilosus Crura, mas que o corpo entregue não bate com os parâmetros de classificação do departamento. É isso?

— Olha, seu Gerson, a gente cumpriu o combinado. Se a perna passou numa depiladora e numa manicure antes, aí a gente não tem nada a ver não.

Cleiton sorriu como uma criança, mas a tentativa de piada não tinha agradado o irmão. O supervisor também não estava rindo. Com uma forte cotovelada que fez Cleiton arfar sem ar, Cleberson interferiu.

— Senhor, desculpe o estrupício do meu irmão. Nós entendemos que o bicho não era exatamente o esperado mas, se você tira todas as penas de um pato ainda é um pato. Queria pedir uma consideração aí da sua parte. Não faz nem um mês, eu quase morri num encontro com um xupacu voador, se não fosse eu o departamento não tinha nem ficado sabendo.

O coração de Gerson não parecia nem um pouco tocado, mas simplesmente negar o pedido poderia ser um tiro no pé. Se os irmãos resolvessem abrir reclamação, ele acabaria soterrado por uma montanha de papelada, e não receberia um centavo a mais por isso.

— Olha, eu vou quebrar essa pra vocês, mas não me apareçam com uma presepada dessas de novo, viu? — Os irmãos concordaram com a cabeça em uníssono — A tal da perna depilada de vocês tá lá no depósito. Vocês vão descer lá, vão falar com o Tonhão do almoxarifado, pegar um balde de cola com ele e uma penca de cabelo que sobrou de uma menina do poço, e vão me apresentar essa perna CABELUDA antes da hora do almoço. Agora agilizem aí que eu tenho outros atendimentos.