Bar de finados
Na minha rua, uma rua sem saída, havia um bar que só abria uma vez por ano, no dia de finados. Funcionava em um casarão colonial meio carcomido e meu avô dizia que era tão antigo quanto a cidade. Quando eu era pequeno, não se podia passar por lá naquele dia. Iam alguns adultos, gente séria e taciturna, mas criança não podia nem dentro nem na porta.
Segundo meu avô, era lá onde os que já se foram iam beber, quem era vivo só entrava com convite. O Dia de finados era aquele no qual os mortos eram liberados para voltar ao mundo e visitar seus entes queridos segundo uma tal tradição romana, explicava ele. Mesmo sem eu entender direito o significado de “tradição”, e não tendo a mínima ideia do que se tratava “romana”.
Vovô dizia que o dono do lugar era um combinado, um homem cuja alma estava metade cá e metade lá, e assim fazia os acordos e passava as conversas de um lado para o outro. Todo ano escolhia a dedo dez ou doze vizinhos do bairro, só gente conhecida, para sentar ali com as portas e janelas fechadas. No pátio interno, banhado pela luz da lua dos ausentes, trocavam um copo de pinga e um dedo de prosa com os chegados do lado de lá.
Ele mesmo já fora duas ou três vezes. Bebia com o pai, com o irmão, e já na visita mais recente com vovó Florinda que, segundo contou, ainda brigava pra ele ir em casa e botar o agasalho. Ela dizia que ali o vento era frio, gelava os ossos, entrava por todos os poros da alma, e era capaz de dar uma pneumonia naqueles pulmões velhos e cheios de cigarro do vovô.
Passei a infância com medo daquela casa, eu e os outros meninos da rua. As mães diziam que, em criança, o cordão da vida ainda era muito fino. Chegando perto demais da porta no dia de finados, um ou outro insatisfeito lá de dentro poderia dar um puxão e, assim, tirar a vida de menino curioso e usar para si próprio, para andar novamente do lado de fora.
Aquela procissão de senhores, cabeças brancas e bengalas, ia pela rua com retratos e flores nas mãos. Juntavam-se ainda cedo da noite na porta dos bar. Uns, sem convite, ainda tentavam negociar a entrada, mas seu Miguel mandava voltar até as senhoras em pranto. Um negro muito alto assentado por lá convencia os mais exaltados de que ainda não era hora.
Na manhã seguinte, muito cedinho, antes até de abrir a padaria do Jorge, lá vinham os convidados pela rua abaixo. Alguns felizes, sorridentes, outros chorosos, apoiados por um ou outro parente. Mas uma coisa era certa: independente do resultado, ninguém queria deixar de ir. A disputa pelas vagas do ano seguinte começava naquela manhã mesmo.
Seu Miguel, o combinado, não saía de casa. Na rua, nenhuma das crianças jamais o vira. Só meu primo Pedro dizia tê-lo visto uma vez, pelas aberturas de uma persiana. Descrevia um homem branco como uma folha de papel e alto feito uma algaroba, comendo uma bacia de carne de gente com a boca vermelha de sangue. Dizia também ter recebido um olhar profundo e silencioso do homem, quando este o percebeu ali. Pedrinho, conhecido entre os meninos da rua pela coragem, pela esperteza e pelas mentiras que contava, passou, dizem, a molhar a cama desde aquele dia.
Mudei-me aos dez anos. A separação dos meus pais me levou pra outra cidade, outro bairro, outra rua. Essa, uma rua aberta, de duas vias e movimentada, onde criança não podia brincar porque o perigo de atropelamento era real. Cresci daí em diante num apartamento, em frente a televisão.
Troquei cartas com o vovô por um tempo, e ainda fui nas férias uma outra vez passar um mês com o meu pai, lá na casa velha. Mas nunca mais em novembro, e os meninos da rua estavam sempre viajando para alguma praia. Das vezes em que perguntei sobre o seu Miguel meu avô riu, mudou o canal da TV e me pediu pra buscar seu remédio da pressão.
Os anos passaram, me mudei novamente para fazer faculdade. Passei um tempo longe até da minha mãe, morando fora do país. Me esqueci, no meio de tanta coisa, daquela rua sem saída.
Muitos anos depois, estava em Frankfurt quando recebi a ligação. As luzes de natal já animavam a cidade e a voz cadenciada do meu pai, que já fazia quase dez anos que eu não ouvia, transformou aquela notícia em um fato quase trivial, como quem liga pra perguntar da chave do armário de sapatos. Fiz duas ligações, avisei meu senhorio e peguei o primeiro vôo para o Brasil.
Foi um dia chuvoso, cheguei tarde demais pro velório, só pude ficar parado de terno preto e óculos escuros olhando as pás de areia cobrirem a fonte da maior parte do encantamento da minha infância. Vó Florinda acabou acertando, uma pneumonia galopante levou meu avô.
Depois contas, inventário, espólio e toda essa bagunça de quem fica com o que. Meu avô, como a maioria das pessoas comuns, não havia deixado testamento. Meu pai me disse, naquela mesma noite, que a casa da rua sem saída meu avô tinha deixado pra mim. O velho havia dito e repetido isso diversas vezes até ter a certeza de haver sido entendido. Meu pai odiava aquela casa, tinha lá seus motivos, e depois de acertar os trâmites ele deixou a chave em cima da mesinha de centro e voltou pro Recife.Eu também fui embora, só pude retornar no final de outubro do ano seguinte.
Ao girar a chave na fechadura, de alguma maneira eu sabia: estaria lá. No chão da sala, um envelope encardido e sem remetente, empurrado por debaixo da porta, me esperava. Abri. Dentro havia um ingresso velho, com cara de anos 60, onde se lia: convite para o bar 2 de novembro.
Foi um estranho gatilho de memórias. Pensei imediatamente, por qualquer motivo, em ligar para o meu primo Pedro, com qual não falava a quinze anos. Onde estaria? O que estaria fazendo? O que diria ao saber que eu entraria no bar dos finados?
Por alguns instante minha mente racional e ateia de bioquímico lutou, se debateu contra a possibilidade irracional da existência de qualquer coisa como um pós vida. Quase pude ouvir ela trincar com o pensamento de que, além disso, houvesse mesmo um bar no qual os falecidos se encontravam com os vivos. Deixei o convite largado numa gaveta e passei a semana inteira fingindo que o pensamento racional havia vencido, até a quarta-feira de finados. O pensamento racional não venceu.
No fim da tarde, coloquei meu melhor terno e o chapéu de costume do meu avô. Comprei uma coroa de flores e, cedo, já estava no final da rua. Vi que os números tinha diminuído, poucos velhinhos esperavam na fila, provavelmente os outros agora ficavam da porta pra dentro. Pude reparar, em algumas sacadas, que outros ainda me dedicavam um olhar de inveja.
Por volta da seis, com o fim do último raio de sol, abriram-se as portas. Lá estava aquele homem alto, agora já com um ou outro cabelo branco, recebendo os ingressos e controlando a entrada. Quando chegou a minha vez, ouvi meu próprio bom senso me chamando de ridículo. Ignorei os protestos do pensamento científico, entreguei ao homem o paletó, o chapéu, o ateísmo, a bioquímica e procurei uma mesa para esperar o meu avô.