Dezessete Graus
Ana enlouquecia com o ar condicionado, ou melhor, com a falta dele. O apartamento de uma única e estreita janela a fazia andar quase nua. Era isso ou a combustão. Escolheu gastar as economias no concerto, a outra opção seria gastá-las inventando motivos para se ausentar do pequeno forno ao qual chamava de lar, mas sairia mais caro.
Ligou para uma assistência e, como todos nós pobres mortais, reservou um dia para esperar. Marcaram às nove da manhã, chegaram às quatro da tarde, fiéis ao cronograma do prestador de serviço. Isso deve ser política de mercado, para deixar bem claro quem precisa de quem.
O som do interfone encheu o coração da moça de alegria. A boca salivava com a possibilidade de dormir enroladinha no edredom ainda naquela noite. Dezessete graus era a meta. Pôs uma roupa, foi complicado encontrar uma combinação de peças fresca e, ao mesmo tempo, capaz de cobrir o suficiente para evitar voz de prisão por atentado ao pudor. Correu para a porta.
Entraram dois homens com macacões azuis e, depois dos cumprimentos de praxe, passaram a dissecar o aparelho.
— E aí? Ana se abanava.
— Olha dona — O rapaz enxugava a testa com a mão — é peça, precisa fazer o pedido. Aí só na próxima semana.
O gume afiado daquelas palavras separou a moça do sonho num corte só. Despediu-se e agradeceu usando da etiqueta automática, incutida nela a vida inteira pela mãe. No entanto, por dentro, amaldiçoava todas as gerações passadas e futuras de técnicos de ar condicionado.
Voltou a quase nudez. Expirou forte, fazendo a franja voar para cima. Pensou numa cerveja, talvez anestesiasse um pouco a frustração. Abriu a geladeira e ficou ali parada, sentindo o alívio do toque do ar frio. Considerou a possibilidade de dormir aos pés do eletrodoméstico, com a porta aberta. Mas as consequências para a conta de luz e para a conservação dos alimentos a trouxeram de volta à realidade.
Com a garrafa na mão, o líquido esquentando rapidamente, vasculhou, com alguma urgência, a gaveta de talheres por um abridor. Não lembrava quando o tinha visto pela última vez. Depois de vários minutos preciosos desperdiçados na busca, e de ter praguejado contra todo o universo, devolveu a garrafa à geladeira. Um vizinho devia ter um abridor para emprestar.
Ana era nova no prédio, ainda não conhecia ninguém. Havia esbarrado com duas ou três pessoas nas escadas, mas nada além disso. A busca pelo abridor juntou o útil ao agradável, dando-lhe motivo suficiente para não ser considerado esquisito bater a porta de um desconhecido. Decidiu tentar a porta logo ao lado, o barulho da tv entregava a presença do morador.
Depois do terceiro toque da campainha, uma moça de lag e top de ginástica atendeu.
— Oi?
— Oi, desculpa incomodar, meu nome é Ana, sou sua vizinha do lado.
— Ah! Oi, Jessica, prazer. — Apertaram as mãos.
— Pois então, eu só queria saber se tu tem um abridor de garrafa pra emprestar um minutinho. Eu não consigo encontrar o meu — Ana sorriu, mordendo o lábio.
— Claro, com certeza, entra ai.
As duas moravam em apartamentos idênticos, como gêmeos univitelinos, mas, se fosse esse o caso, a mãe claramente amava mais o de Jessica. Ao contrário da bagunça de Ana, a sala da vizinha era limpa, organizada e bem decorada. Com o segundo passo casa adentro, o sonho de Ana voltou à pele. O motivo pendia na parede a dois metros do chão: Ar condicionado, dezessete graus. O abridor se dissolveu completamente nas prioridades de Ana, a missão agora era outra.
— Toma aqui, não tem pressa pra devolver não. Minha cerveja acabou, e supermercado agora só no fim de semana.
— Ah… obrigada. Olha — O momento era aquele — Eu acabei comprando mais do que devia. Tava na promoção, sabe? Tu não quer dividir umas? Como agradecimento?
— Pode ser, deixa só eu desligar a televisão e vou contigo.
— Não, não, precisa não, eu vou em casa e pego. O apartamento tá uma super bagunça…
— Tá bom — Jessica sorriu — deve ter sobrado algum salgadinho pra beliscar, vou procurar enquanto tu volta.
Ana retornou munida de doze garrafas e da determinação inabalável de permanecer naquele friozinho o máximo de tempo possível. As duas começaram a conversa meio sem jeito, mas não demorou para as coisas começarem a fluir como uma pororoca violenta em direção ao mar.
Ao mesmo tempo em que concordavam em todos os tópicos importantes, discordavam absolutamente em todo resto, gerando aquela arenga gostosa, cheia de espaços para provocar. E assim a noite foi passando. As cervejas já tinham acabado há um século quando Ana se deu conta da hora.
— Meu Deus, quase meia-noite — Arregalou os olhos.
— Que foi? Tua carruagem vai virar abóbora ou algo do tipo? — Ambas riram.
— Eu tenho que ir, as garras do capitalismo me esperam amanhã cedo.
— É.. eu também…
Ana levantou, e Jessica a acompanhou até a porta.
— Olha, eu curti muito… E tenho que confessar uma coisa: Eu só te chamei pra beber para filar o teu ar condicionado, o meu tá quebrado. Mas teria sido divertido do mesmo jeito torrando a trinta e cinco graus.
— Ah, não tem problema não, eu só aceitei o convite porque te achei gostosinha, mas eu teria me divertido mesmo que você fosse uma górgona amaldiçoada pelos deuses.
As duas ficaram paradas na soleira da porta, se olhando. Jessica quase se arrependeu do comentário, era a bebida falando, mas ela não era o tipo de mulher que se arrependia de falar a verdade. Depois de um momento que, para Jessica, durou aproximadamente o tempo de uma vida, Ana respondeu com um olhar malicioso.
— O frio do ar condicionado chega no quarto?