No início de qualquer projeto que pretende ser essencialmente novo, tudo que você tem é uma página em branco. As vezes é complicado descobrir por onde começar. Felizmente para mim, as linhas guia do meu projeto estavam bem definidas e eu já tinha na bagagem algumas boas referências. Então, havia um norte para me guiar e algumas pistas de por onde eu deveria começar.

Características

Na esmagadora maioria dos jogos os personagens tem características que lhes permitem influenciar o resultado de situações cujo o desfecho gera dúvida. As únicas exceções que conheço são jogos muito simples, baseados puramente em aleatoriedade ou gerência de recursos, e o Psy*Run, onde todo personagem é igual mecanicamente, e tudo se resume a escolha do jogador de como usar os recursos que são comuns a todos.

A abordagem de Psi*Run é genial, mas não serve para todos os contextos. A ideia nele é ter um jogo onde decisões são o foco central, enquanto talento, recursos e ferramentas não tem grande importância devido à natureza específica da experiência que o jogo pretende causar. Para um jogo que pretenda lidar com uma experiência diferente da de Psy*Run a abordagem clássica, onde o personagem possui características individuais que vão afetar quais ações ele pode realizar e como elas serão realizadas, ainda é a melhor escolha.

Partindo dessa premissa, minha primeira decisão foi dividir as características de personagem em Atributos e Competências. Sendo o primeiro composto por capacidades inatas do personagem, e o segundo por um misto de experiências e habilidades aprendidas. Esse divisão emanou do princípio Abstração Intuitiva, considerando que quase todo mundo entende a capacidade de alguém para realizar uma tarefa como a soma do talento natural desse indivíduo com o treinamento e a experiência que ele possa ter.

Vale notar que, sem um elemento guia para balizar-la, a decisão do que e de como representar características mecânicas de um personagem não seria nada simples. Se, nesse design, eu estivesse aberto a níveis diferentes de abstração, essa escolha teria que se dar por outro critério, ou mesmo ser puramente arbitrária. Esse é um exemplo claro de como estabelecer previamente os objetivos que se quer alcançar com uma mecânica pode facilitar o trabalho de design em si.

Atributos

Ainda me guiando por esse mesmo princípio, primeiramente escolhi dividir os atributos entre físicos e não-físicos, a depender da natureza do desafio em que cada um iria exercer influência. Mas isso ainda não os individualiza de forma satisfatória, eu precisava de algo que conseguisse gerar um nível de especialização que desse margem aos arquétipos que eu desejava representar no jogo. Então apliquei a ideia de divisão entre potência e controle sobre cada metade, o que me resultou em quatro grupos básicos de atributos: Potência física, controle físico, potência mental e controle mental.

Não tenho como negar que essa é uma divisão tão arbitrária como qualquer outra. Eu poderia ter realizado muitos outros cortes e subdivisões caso a ideia fosse tentar aproximar-se de uma representação mais fiel de todo o leque de potenciais humano, e certamente acabaremos com uma lista bem longa. Mas é aí que o princípio da Simplicidade Geral vem para nos ajudar a manter as coisas no nível essencial.

Muita coisa emana desse princípio, e uma delas é a ideia de paridade entre características. O que significa que características de mesmo tipo, atributos nesse caso, devem ter o mesmo peso, ou seja, o mesmo grau de importância e influência. Em outros jogos não é incomum encontrarmos o que eu chamo de Atributo Super Valorado, uma característica que tem mais importância que outras do mesmo grupo.

Alguns jogos, como GURPS, admitem que isso ocorra mas tentam remediar esse desnível cobrando mais caro por essas características. Em GURPS 4ª edição, IQ e DX custam o dobro de pontos por nível de ST e HT porque, obviamente, são muito mais úteis e influentes. Mas há outros jogos onde essa discrepância não tem contrapeso, como o próprio GURPS em sua 3ª edição e D&D, onde Destreza e Força são atributos muito mais valorados do que Sabedoria e Constituição.

Como a Simplicidade Geral nos prega que não devem haver características de um mesmo grupo com custos diferentes, isso implica que todas as características de um grupo devem ter valoração mais ou menos equivalente. Caso contrário, criamos um desequilíbrio que pode induzir o jogador a escolher uma característica não por ela ser mais adequada ao conceito do personagem, mas por ter um custo benefício mecânico claramente melhor. A não ser que essa indução faça parte de algum objetivo do designer para o jogo, deve ser evitada sempre que possível.

Existem, a priori, duas maneiras de nivelar características: Decomposição, onde se diminui a abrangência de uma característica dividindo-a em duas ou mais, e aglomeração, onde se aumenta a abrangência de uma característica fundindo-a a uma ou mais outras características. Vamos analisar as características mais comuns que emanariam de uma divisão entre físicas e não físicas, e a abrangência relativa de cada uma.

PS.: Num texto futuro vamos explorar as métrica que eu uso para medir a abrangência de uma característica mas, por agora, vou apenas apresentar um valor alegórico, estimado de forma subjetiva, para que possamos continuar nossa análise.

Para características físicas temos:

Força — A mais óbvia e evidente de todas, a capacidade muscular bruta geral de um indivíduo. Usada para saltar, erguer, carregar e empurrar objetos, entre outras coisas.

Vigor — a capacidade de um indivíduo de resistir a esforço físico, sua estamina, seu fôlego.

Resistência — A capacidade do organismo de resistir a doenças, intempéries, venenos e outras situações prejudiciais que não envolve destruição direta da massa corporal.

Precisão — coordenação motora, habilidade para realizar tarefas delicadas e que exijam exatidão.

Agilidade — Velocidade e graça de movimentos, equilíbrio, e controle corporal.

Para características não físicas temos:

Inteligência — Capacidade bruta de resolver problemas lógicos usando as ferramentas disponíveis.

Raciocínio — A velocidade com que o personagem é capaz de tomar decisões a partir de gatilhos do ambiente.

Memória — Capacidade de recuperar fatos ou informações com que se teve contato no passado.

Determinação — Capacidade de controlar os próprios impulsos e reações e de se manter firme diante de pressões externas.

Carisma — Magnetismo pessoal, capacidade de se fazer notado, ouvido e seguido por outros.

Persuasão — Capacidade de convencimento, de gerar empatia ou medo de si próprio.

É possível discordar dessa divisão, assim como considerar que alguns dos atributos poderiam ser dividido ou outros poderiam ser aglutinados, mas vamos considerá-la meramente a título de exemplo.

Começando pela análise do eixo físico, se ordenarmos as características do maior para menor nível de abrangência estimada teríamos: agilidade(3,5), precisão(3), força(3), vigor(2) e resistência(1). Nesse caso, apenas Força e Precisão tem abrangência semelhante.

Ignorando por agora a ideia de buscar reduzir ao máximo os elementos com que trabalhamos e, considerando os métodos para equiparar abrangência, poderíamos decompor as caraterísticas pra tentar aproximá-las do valor de Resistência(1). Essa abordagem vai esbarrar em um problema: o elemento atômico. Um elemento atômico é uma característica que, pela sua própria natureza, não faz sentido que seja dividido. Como decompor Agilidade? Nenhuma resposta lógica se apresenta de cara, assim como Força e Precisão também são complicadas de decompor sem que precisemos quebrar o princípio da Abstração Intuitiva.

Sendo assim, podemos fazer o oposto, tentando agregar características. Isso também nos colocaria no caminho de reduzir o número de características, o que acompanha o princípio da Simplicidade Geral. Nesse caso, algumas combinações surgem intuitivamente: Agilidade(3,5) e Precisão(3) são ambas características relacionadas a controle de movimento, faria sentido agregá-las em um só característica, a qual dei o nome de Destreza, e que teria 6,5 de abrangência estimada. Nos resta Força(3), Vigor(2) e Resistência(1).

Força(3) e Resistência(1) são características de potência física, e faz sentido combiná-las, vamos chamar esse novo atributo de Compleição(4). Ja vigor(2), apesar de também estar relacionado a potência, poderia se encaixar na nossa recém criada Destreza, uma vez que, quase sempre, fôlego e estamina estão ligados a agilidade. Mas, fazendo isso, terminaríamos com Destreza com 8,5 de abrangência, enquanto Compleição teria 4. Nesse caso, faz mais sentido adicionar Vigor à Compleição, o que nos deixaria com duas características físicas finais: Compleição(6) e Destreza(6,5).

Analisando agora o eixo não físico, ordenando as características temos: Inteligência(3,5), Persuasão(2,5), Carisma (1,5), Memória(1,5), Determinação(1,5) e Raciocínio(1). Usando da mesma lógica do eixo físico, vamos tomar o caminho da aglutinação. É bem fácil perceber que Raciocínio(1) e Inteligência(3,5) são valores afins, uma vez que ambos tratam de reagir a problemas, juntei os dois num atributo que chamei de Intelecto, com 4,5 de abrangência. Persuasão(2,5) e Carisma (1,5) também são obviamente relacionados, já que ambos têm a ver com influenciar outros, eu os reuni com o nome de Presença, com 4 de abrangência.

Nos sobram então Memória(1,5), Determinação(1,5). Como somos obrigados a aglutinar, memória tem mais a ver com Intelecto do que com Presença, o que vai elevar a abrangência do Intelecto a 6. Por último, vamos dar o maior salto de significado até agora para poder aglutinar Determinação com Presença, considerando que Determinação também tem a ver com influenciar, mas nesse caso, influenciar a si mesmo. Com isso temos Presença com 5,5 de abrangência, e concluímos nossa tarefa de equiparação de valor na medida do possível ficando com: Compleição(6), Destreza(6,5), Intelecto(6) e Presença(5,5).

Observe que ainda existe alguma discrepância entre os valores, mas temos um equiparação de 85% que, para mim, é o suficiente. Chegamos, por uma via mais longa, aos mesmos atributos que eu cheguei fazendo uma divisão simples de físico e não físico entre potência e controle.

No próximo texto vamos falar de competências.