BioTétrico
Eu não temo a morte, e não compreendo esse temor.
O meu medo da vida é muito maior.
A morte é inócua, insípida, inodora e, em última instância, indolor.
A vida primeiro dói, o resto é só consequência.
O medo que me toma é da próxima hora,
da próxima conta, do próximo choro que vem do berço na varanda.
De tudo que me cobra, que me leva em conta para existir.
Me apavora a expectativa de direito.
O medo que me toma é só da solidão daqui.
Outras solidões, se é que existem, são problemas para um outro.
É de ter laços, tanto de quanto de não tê-los.
É de depender de tudo que me apavora.
Tantas partes móveis me exasperam.
Botões, alavancas, amores e ódios e o preço do arroz.
É o tesão guardado, esperando uma noite sem cansaço,
se acumulando e se transformando em mágoa.
É tão difícil ser duas coisas, dez coisas, todas as coisas necessárias.
Mudar de ser por batida do relógio.
Me fragmentar em pedaços perfeitos que eu tenha como juntar numa roupa descente,
pra não sair nu para pôr o lixo pra fora.
Como faz para se medir amores?
Para separar em saquinhos hermeticamente fechados e usar correto?
Para dar o leite ao gato e a língua à buceta
sem dar o leite à buceta e a língua ao gato. Como faz?
Pra olhar uma parte de baixo para cima
sem olhar todo o resto de cima para baixo?
Para revolucionar o mundo e mandar lavar o sofá a seco,
contra Toda Autoridad Excepto Mi Mamá?
Como é que se espalha,
sabendo que pra isso precisa empurrar os móveis,
derrubar um monte de vasos que são herança de família?
E quando eu for correr, e me cortar nos cacos?
É muita coisa, eu não dou conta de tudo.
Já a morte, não me preocupa.
Morrer, todo mundo já nasce sabendo,
e é de graça.