Eu sempre temi a cegueira, ainda nos meus vinte anos fui avisado por um médico que, provavelmente, ficaria cego. Pra minha sorte, cai no condicional do advérbio. Apesar disso, de todas as deficiências envolvendo sentidos, sempre acreditei ser a cegueira a mais pesada. Agora, distante da ameaça de ser tomado por ela, já não tenho certeza.

Meu avô está quase surdo, minha avó está quase cega.

Do sofrimento dos dois, excluindo outros problemas particulares de cada um, sinto que, para ele, o fardo é maior. Minha avó, mesmo quase cega, ainda ri das minhas piadas, ainda se distrai com as minhas reclamações tão simplórias frente aos problemas dela. Ainda discutimos sobre o meu ateísmo, a revelia de eu estar sempre repetindo que não sou ateu.

Já o meu avô, está proibido de fazer aquilo que mais amou a vida toda: conversar. Não consegue participar das discussões à mesa, dos assuntos, das decisões. Está relegado a duas ou três frases trocadas, aos gritos, com os netos, com os filhos. Ainda fala, mas as diferenças entre um monólogo e uma conversa são muitas. Procuramos um médico, compramos pra ele um aparelho de surdez que ele odeia usar e que não faz grande diferença.

Ele fica ali, engaiolado no silêncio. Apartado da vida. E eu, o neto carrasco, ainda tenho de sentar com ele para, aos gritos, tentar convencê-lo a ser racional em assuntos práticos. Discutir verdades inconvenientes. Ousar tentar tirar dele as únicas coisas as quais ele ainda é apegado: morar no interior e trabalhar.

Esse papel me foi reservado. Ninguém mais ousa. Ninguém quer contar a ele sobre a situação financeira complicada da família, sobre como a permanência dele morando tão longe da capital já beira o inviável. Aos poucos, vão todos empurrando com a barriga, esperando sei lá o que. A morte, talvez.

Eu não consigo só esperar. Não pretendo ficar olhando meus avós passarem os últimos anos de vida no desconforto, só para não ter de lidar com o meu desconforto. Às vezes, para fazer o melhor, é necessário fazer o pior. Ou, ao menos tentarei me convencer disso hoje a tarde, quando for conversar com alguém que não quer, não precisa, e já quase não pode me ouvir.