Sou do interior, mas nunca fui do interior. Nunca tive em mim as qualidades do habitante do sertão. Sempre detestei jambo, graviola, seriguela e chuva; uma heresia atrás da outra. Sem contar que sou frouxo, tenho medo de bicho e sou pouco afeito ao confronto. Não obstante tudo isso, nasci lá, e sempre me perguntei se isso bastava para me declarar sertanejo.

Fugi pro asfalto quando pude, os ares esterilizados da cidade grande, sem terra e vida jogados em mim a todo momento, eram mais salutares. Aqui eu podia me esconder no quarto lendo, a conta gotas com o meu parco inglês, revistinhas de super herói importadas. Ninguém estranhava, ninguém vinha questionar. Não aparecia um só vivente pra reclamar do meu amofino.

Eu gosto do quão tarde a cidade ia dormir, não me sentia sozinho acordado às duas da manhã. De onde vim, farra era até às dez. Afinal, dono de bar também dorme. Passou de certa hora só se tinha a televisão, com seu leque enorme de três canais, para se distrair. Na capital, às dez era a hora de sair, era início da noite, nada de relevância começava antes das dez.

Também aprecio como o lugar espelha o mundo. Num destino turístico como Fortaleza, uma pequena parte do planeta está sempre vagando pela orla. Um chines aqui, um mexicano acola, alguns acabam até ficando. No sertão não é possível conhecer um colombiano com nome italiano, que te conta em inglês sobre o tempo que passou na Espanha.

Até os mercados têm cheiro de viagem, e se pode achar frutas e temperos das origens mais exóticas. Há toda uma miríade de novos sabores para desgostar. Sim, tenho gostos estreitos, minha heresia não se limita às coisas do sertão. Gosto sim das possibilidades, gosto de ter opções, mas isso não significa de forma alguma que eu vá optar.

A cidade até tem museus, coisa da qual não sou grande fã. Arte estática, sem contexto, tem pouco poder de me interessar. Preferia muito mais os livros, os documentários da TV a cabo. Hoje a internet já tomou até a caatinga, tem vaqueiro de moto procurando gado com GPS. Já quando eu era menino, adolescente até, TV a cabo era um mundo à parte. Fissão nuclear, pontos de Lagrange, fossas marianas, darwinismo, trepanação, estava tudo lá.

Mas, estou ficando velho e, como diz Caetano, e esse eu conheci ainda no sertão por intermédio de mamãe, alguma coisa acontece no meu coração. A metrópole me cansa, as modernidades lentamente começam a incomodar. Depois de consumir o planeta e adjacências por mais de vinte anos me sinto estufado. Já não me interessam as trivias, a história do japão, a explicação física por trás da fata morgana. Nasce em mim uma vontade de marasmo, de céu noturno estrelado, um grilo cantando, talvez.

Talvez, também um pouco tarde. Estou preso até o pescoço pelos tentáculos de conexões remotas. Amigos fantasmas, trabalho mecânico, o barulho incessante da TV. E, mesmo se pudesse retornar ao sertão, ele já mudou. Tem Smartfit e Netflix, o mundo o invadiu. A verdade é que não há mais para onde eu me retirar.